sexta-feira, 11 de junho de 2021

A Canção do Centenário - Os 100 Anos de Satyajit Ray



O cineasta indiano Satyajit Ray nasceu no dia 2 de maio de 1921. Ou seja, é um recente centenário - ainda que tenha morrido em 1992, aos 70 anos. Meu ponto: foram muitas as celebrações e retrospectivas nos simbólicos 100 anos de Orson Welles (em 2015), Bergman (2018) e Fellini (2020), só para citar alguns da última década. Moço Ray merecia (muito) mais barulho, e o motivo para tal costuma ser resumido à influente "Trilogia de Apu". O que poucos sabem é que nos 37 anos que dedicou integralmente ao Cinema,  o cineasta lançou quase 40 filmes numa impressionante média de um longa por ano. Entre eles, pérolas pouco valorizadas como "A Deusa" (1960) e "A Esposa Solitária" (1964), absolutas aulas de Poesia e Sensibilidade Visual. Todas na íntegra no Youtube mais próximo, vale lembrar. 

Há claro motivo para a tal "Trilogia de Apu" ser presença garantida em qualquer lista que se preze de "Melhores Filmes de Todos os Tempos". O primeiro do trio, também o inicial trabalho do ex-ilustrador com uma câmera, levou quatro anos para ser concluído com orçamento mínimo - e já começou fazendo barulho. "A Canção da Estrada" (1955) levou o inédito (e único) prêmio de "Melhor Documento Humano" naquela edição do Festival de Cannes. O nome escolhido para a consagração do Júri resume bastante. A câmera contemplativa e sábia de S. Ray enquadra a natureza como fundamental personagem ativo e mais importante efeito especial em cena. É ela, a Natureza, a ditar mudanças e reviravoltas implacáveis que atingem a pobre família do pequeno Apu, um mero coadjuvante do Espetáculo da Vida. Ainda que belíssimo em cada vagalume ou trem distante ao horizonte, é um turbilhão igualmente cruel. Não muito diferente que no lado de cá da câmera, nos apaixonamos pelos personagens na mesma rapidez que os perdemos. Um fluxo que segue implacável em "O Invencível", sequência imediata de 1956. Como uma jovem criança fascinada pelas figuras determinantes da Infância, somos guiados e envolvidos pela envelhecidíssima (e quase inacreditável) tia Indir, a carismática irmã mais velha Durga, e por todos os sacrifícios da arrebatadora figura materna encarnada em Karuna Banerjee. Doses mais gentis de esperança surgem ao horizonte em "O Mundo de Apu" (1959), meu favorito exatamente por fechar o arco do personagem (enfim protagonista da própria narrativa!) sem desvalorizar os ecos de seu turbulento passado.  Em trio, formam um perfeito "Documento Humano" que ultrapassa barreiras temporais e culturais.




O igualmente Gigante cineasta japonês Akira Kurosawa, fã confesso de S. Ray, certa vez declarou publicamente que nunca ter visto um de seus filmes "é como viver na Terra sem nunca ter visto o Sol ou a Lua". Gentilezas à parte, vale destacar que o Sol e a Lua são sempre os mesmos por todo o planeta, independente dos diferentes ângulos de observação. A metáfora cabe para o caráter Humano que transborda de cada filme bengali assinado por S. Ray. É evidente que alguns figurinos sejam sim exóticos, e alguns rituais muito regionais, a ponto de parecem quase fantasiosos. Porém é a Essência dos olhares e gestos que seguem em intocável sintonia com quem ali consegue identificar as pequenas aldeias e viajantes de 2021. São os ecos de Humanidade que extrapolam os 100 anos que Satyajit Ray teria vivido até aqui - e garantem a Eternidade a qualquer artista. 

O trunfo maior da Trilogia de Satyajit Ray?  Descobrir que a Canção da Estrada nos é uma melodia familiar, que já sentimos (todos!) o ímpeto Invencível e muito principalmente que o Mundo de Apu, pasmem, não é tão diferente do nosso. 




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