quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Veni, Vidi, VITTI - O Eclipse de Monica


Ontem, dia 2 de Fevereiro de 2022, li diversas manchetes que anunciavam a morte de Monica Vitti. Matérias em português, italiano, francês, inglês. Nunca pensei que leria aquela informação, na língua que fosse. Monica Vitti, nascida Maria Luisa Ceciarelli. Minha musa favorita do Cinema Mundial, desde a primeira sessão de "L'Avventura" (1960) - a mesma sessão que mudou minha forma de observar/captar a existência. Quando aqueles cabelos loiros surgiram na tela ornando a face estrondosamente hipnótica, eu já não precisava de narrativa, de Início / Meio / Fim. A Aventura de Michelangelo Antonioni durava duas horas e meia, e eu cheguei aos créditos finais convicto de que poderia assistir aquela moça italiana por cinco, seis horas, quem sabe até sete. 

Mergulhei de cabeça (e alma) nos outros títulos da atemporal Trilogia da Incomunicabilidade, "A Noite" (1961) e "O Eclipse" (1961). Vitti, sempre em cena, era turbilhão de Fascínio e Poesia. Como um apaixonado por Cinema Mudo, ouso garantir que ela poderia ter sido uma grande estrela de filmes silenciosos, pelo tanto que comunicava em pura presença e irresistível carisma. As obras assinadas por Antonioni não eram lá muito falantes, mas poucas vezes vi um olhar tão expressivo, em tantas sutis nuances. São muitos os momentos em que Vitti grita e explode sem despentear um fio do icônico cabelo ao vento. Em qualquer contexto incomunicável, seu cabelo sempre ventava. Sempre se fazia compreender sem a palavra. A risada aberta e contagiante (!como era versátil!) coloria até o mais contrastado preto e branco. Em algum documentário do meu acervo, ouvi do próprio Antonioni: "Não preciso me preocupar muito com estética. Quando Monica está diante da câmera, qualquer enquadramento é o melhor possível". Ao escutar essa frase, entendi enfim o que seria o tal Amor. 


Para a História da Arte Mundial, bastaria à Monica Vitti a participação naquelas três obras que expandiram os limites do Cinema autoral. Ou bastariam as trocas criativas com Antonioni, tão intensas que transbordariam em intenso Romance. Começou em sua voz, ao dublar Dorian Gray no ainda neo-realista "O Grito" (1957). Após a trilogia revolucionária e chuva de prêmios ao redor do planeta, abraçaram as cores no saturado "O Deserto Vermelho" (1964). Leão de Ouro em Veneza -  nada mal, pra variar. Fim do romantismo, só voltariam a pisar no mesmo set "como bons amigos" em 1980, para "O Mistério de Oberwald" (1980). Para qualquer atriz "eficiente" e restrita ao olhar de um cineasta apaixonado, até que bastaria. Monica Vitti, vastíssima e potente, foi muito além. 




Duplina Antonioni-Vitti desfeita, o diretor italiano foi se aventurar pela Inglaterra, onde gravou a obra-prima "Blow-Up" em 1966. Moça Vitti pegou outro trem no mesmo ano, pro mesmo lugar, para também experimentar o sotaque inglês. Surgiu gigantesca no orgulhosamente pop "Modesty Blaise", encarnando a icônica personagem dos quadrinhos de Peter O’Donnell. Dirigida pelo veterano Joseph Losey, e sob a imortal trilha puro jazz de Johnny Dankworth ( ouçam no Youtube, Spotify, qualquer lugar, mas ouçam! ), Vitti explodiu em charme - antecipando em uma década o seriado "As Panteras". Imagine: era a melhor Bond Girl possível, mas sem precisar de um Bond! Caso alguém ainda duvidasse de sua extrema versatilidade, era prova indiscutível do talento pra Ação e, principalmente, pro Humor. A diva, já reconhecida como uma das atrizes mais belas e talentosas de seu tempo, se consagraria definitivamente na Comédia Italiana. Sob a batuta de mestres como Mario Monicelli e Ettore Scola, ultrapassaria a bolha dos críticos e se tornaria um dos rostos mais celebrados pelo grande público. Assim foi com os sucessos "A Garota com a Pistola" (1968) e "Ciúme à Italiana" (1970). La Vitti até experimentou a loucura do espanhol Buñuel em "O Fantasma da Liberdade" (1974). Tudo funciona até hoje, muito graças ao seu irresistível e natural carisma. Poucas vezes a câmera cinematográfica se permitiu um flerte tão escanradado e apaixonado com uma Atriz. Faço questão do A maiúsculo. 

O último filme de Monica Vitti foi lançado em 1990. "Scandalo Segreto" foi escrito e dirigido pela própria, protagonista ao lado do americano Elliott Gould.  Sua estreia na direção, com primeira exibição na mostra Un Certain Regard daquele Festival de Cannes. Apesar da pompa e luxo, foi seu trabalho final, por escolha. Isso quer dizer que quando eu surgi no mundo, em 1992, La Vitti não mais fazia Cinema. Ao me apaixonar por sua figura (aberta & declaradamente), descobri que a última aparição pública tinha sido em 2002, por indiscretas fotos de paparazzis durante um passeio com o marido - o roteirista (e muito sortudo!) Roberto Russo. Desde então, ela permaneceu reclusa e afastada de qualquer contato público por duas décadas. Vítima de uma doença degenerativa que lhe tirou a memória e autonomia, confiou sua existência à cada frame eternizado por sua magnética presença. Visitar seus filmes (qualquer um e todos) é degustar o prazer dos sonhos que testemunhamos de olhos abertos. 


Procuro por alguns frames e fotografias para ilustrar esse texto. Muitos olhares e sorrisos familiares, alguns ângulos nunca vistos e sempre surpreendentes. Diferentes penteados,  exóticos figurinos, viscerais intenções dramáticas. Meu mesmo fascínio, na certeza de uma grande paixão. A aparição de La Vitti me aconteceu em 2007, numa retrospectiva especial pela morte de Antonioni naquele ano. Desde aquela primeira sessão, que mudou/moldou minha visão de mundo, é bem possível que eu (involuntariamente) busque ângulos e ecos de moça Vitti por cada esquina que visito, em cada enquadramento que sigo fazendo. Os jornais, posts e links seguem afirmando que Claudia, Vittoria, Valentina, Adelaide, La Ragazza con la Pistola, Mrs. Foucauld, La Tosca, a Modesty Blaise em pessoa não existem mais. Como pode? "Monica Vitti  morreu". Como ousam escrever que uma Obra de Arte morre ? Se acreditam mesmo nisso, sinto quase pena. O latim que me permita a convicção: Veni, Vidi, Vitti .