quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Smile - O Doce Eterno Sorriso de Josephine Chaplin



Existe o curioso caso dos artistas que se envolvem com as filhas de seus ídolos. Alguns mais notórios, como o Rei do Pop Michael Jackson e o casamento entre realezas com Lisa Marie Presley, filha do Rei do Rock - sim, o Elvis. Outros casos mais cults, como um jovem Martin Scorsese em romance intenso com Isabella Rossellini, filha do lendário Roberto. Um quase remake no namoro entre Quentin Tarantino e Sofia Coppola, filha do chefão Francis. Apenas duas vezes minha imaginação fértil flertou com tal risco. Mais recentemente na figura de Lily Collins - que aliás puxou apenas o carisma do maroto papai Phil, e nadica de seu visual. Porém há cerca de 15 anos, essa minha curiosidade atendia pelo nome de Josephine. O sobrenome, de fato intimidador: Chaplin. Terceira criança das oito (!!) que Chaplin teve com Oona, o amor de sua vida, "Josie" era sempre descrita como a mais doce e apegada ao pai. E também muitas vezes apontada como a mais bela da trupe. As fotos ilustravam muito bem, sempre um "vish" a cada sorriso. 

Falando em sorriso, pausa pra foto. Esse é um registro raro e valioso, milagrosamente sobrevivente ao tempo. Nele há um senhor de cabelos brancos, chapéu e óculos, bem sorridente. Sim, a própria lenda. Charles Chaplin, então com 77 anos, dirigia o que seria seu último filme: "A Condessa de Hong Kong". Seu primeiro filme colorido, o primeiro longa sem sua presença no elenco e estrelado por grandes astros - no caso, Sophia Loren e Marlon Brando. Seria também um grande fracasso, mas não é esse o foco aqui. E sim a foto em questão. O homem de costas é Mr. Brando, já Oscarizado e levemente decadente. Diante dele, o tal sorriso. A jovem Josephine se preparava para sua simbólica aparição em cena, com a bênção do pai. E por mais que existisse uma Loren presente na produção, sempre imaginei a emoção de ser apresentado a esse gentil e quase tímido sorriso. Doce resumo do prazer que ela descobria sentir num set de filmagem, já acostumada aos gigantes. 



A moça nasceu 43 anos antes do meu surgimento, mas a Magia da Fotografia me permitia esquecer tal detalhe numérico-temporal. Apegadíssima ao famoso pai, Josephine ousou se permitir ser dirigida por outros nomes famosos do Cinema mundial. É inegável a força de sua presença em "Os Contos de Canterbury", sob o olhar "vai com tudo" de Pasolini. Ou sob a batuta sofisticada de Claude Chabrol em "Um Tira Amargo". Por mais papéis que pudesse ter feito, o sobrenome naturalmente seria sempre um peso. E não só: em batismo consta como Josephine Hannah - o segundo nome em tributo à avó, que Charlie tanto amou. Não era pouco. Uma verdadeira princesa de traços hipnóticos, naquele reinado da Comédia. É esquisitíssimo ler tantas manchetes anunciando sua morte aos 74 anos, a primeira entre os herdeiros diretos de Charles & Oona. Aconteceu 13 de Julho, enquanto eu ingenuamente ouvia Stones para celebrar o Dia do Rock. 


Por mais que eu não consiga projetar a imagem de um grande pátio celeste, há Beleza em imaginar seu reencontro com um Chaplin já grisalho e imediatamente pimpão ao rever sua eterna criança se aproximar. Aquele Espaço-Tempo de melódica suspensão onde não se envelhece, onde não se termina, onde cores e tons do realismo são cristalizadas no poético preto e branco da Memória. Onde as Luzes da Ribalta nunca se apagam

Doce Josephine, jovem paixão que permanece. 


quinta-feira, 8 de junho de 2023

Meu Bilhete Dourado - "Em Busca do Ouro" e a Descoberta do Cinema


Um forasteiro chega a uma pequena cidade no meio do nada. Solitário, acabou de sobreviver a atentados violentos, tempestades de neve e fome extrema numa incansável busca por um pedaço de ouro nas montanhas frias do Alasca. Ali está quente: um grande salão/bar reúne quase todos habitantes daquele pequeno povoado. Todos dançam, flertam, bebem, lotam o espaço pelo qual o personagem se expreme para adentrar. De repente, toca uma música. Todos reagem. Casais se formam e se direcionam para o centro do salão. Ele fica. Em primeiro plano, apenas observa. Todos dançam, todos bebem, todos celebram, todos vivem. Diferente dos muitos cortes ligeiros e ritmados ao longo da aventura, esse plano se demora. Contemplativo, sem pressa. O Vagabundo de Charlie Chaplin, apoiado em sua fiel bengala, observa um mundo do qual não faz parte. Lembro muito bem da primeira vez que degustei esse enquadramento. Só de escrever sobre, sinto novamente todos os arrepios pelo corpo, um brilho mais forte nos olhos. Foi bem por ali naquele instante que um moço inglês - morto 15 anos antes do meu nascimento - redefiniu o sentido da minha existência. 


O ano era 2005. Fim de semana na casa da avó. Ela me traz uma caixa bagunçada. "Achei isso aqui na arrumação, tudo coisa velha. Veja se algo te interessa, senão é lixo". Vi, e encontrei ali um VHS misterioso, sem nada escrito. Naquela mesma noite, enquanto todos dormiam e eu aproveitava a madrugada (sempre insone), coloquei o VHS para rodar. Era um filme, talvez gravado da TV. Lá estava aquele mocinho de bigode quadrado. Eu já conhecia a figura de Charlie Chaplin de algumas fotos em revistas, de um pôster vintage do "Vida de Cachorro" na parede da casa de um amigo, de um episódio especial de Chapolin em que Roberto Bolaños se vestia em homenagem ao ídolo. Porém era a primeira vez que o via em movimento. Um primeiro filme em preto e branco, certamente o primeiro mudo. "Em Busca do Ouro". Uma obra lançada em julho de 1925, que eu assistia em agosto de 2005. Estava diante de fantasma, todos eles, vivos e hipnóticos graças à Magia do Cinema - que naquela madrugada me estufou de vida. Era a versão original do filme (viria a saber depois), com 90 minutos. E não consegui dormir naquela noite, energizado por 1hora e 30 minutos de algo nunca antes sentido. Eu não fazia ideia do que era aquilo, mas de alguma forma sabia : estou aqui é pra isso. Uma das primeiras atitudes na manhã seguinte foi comunicar a ideia para meu pai e, afinal, lhe mostrar o espetáculo. Coloquei o VHS pra rodar. O filme recomeçou. Por volta dos 20 minutos, a fita rompe. Era pra ser uma sessão única. Certeira, no alvo. Até hoje digo que nunca procurei o Cinema. Ele me encontrou. O ano era 2005.




Desde então, "Em Busca do Ouro" tem lugar seminal e transformador no meu coração, na minha existência. Se comecei a mergulhar na História do Cinema através da obra completa de Charles Spencer Chaplin, "The Gold Rush" foi a faísca inicial para uma grande explosão que me ecoa até hoje, ao vivo, enquanto escrevo esse texto. Após anos sem revisitar a obra, a reencontrei recentemente em versão iluminada, reluzente, na telona do Estação Botafogo - como parte da Mostra Chaplin, em cartaz durante Maio de 2023. Um série de sessões especiais em tela grande e na maior sala do espaço (!), sob curadoria do jovem programador Gabriel Carvalho. Foi a confirmação de que cenas, cortes e movimentos específicos continuam decorados e instintivos aos meus olhos. E também a certeza de que é, sem exageros, um dos filmes definitivos / gigantescos / intocáveis de 128 anos de Magia no Cinema. 


Vale um rápido contexto: já inquestionavelmente o rosto mais conhecido do planeta em 1924, o inglês de 35 anos se desafiava a dar passos mais grandiosos a cada novo filme. Após cerca de 60 curtas (!) entre 1914-1923, a maior ousadia de Chaplin tinha sido "O Garoto", lançado em 1921 com uma metragem de 68 minutos. Equilíbrio absoluto entre Risos & Lágrimas, um sucesso estrondoso ao redor do mundo. Era a confirmação que ele precisava: podia e devia explorar mais o drama da condição humana, até em longa duração. O humor viria junto, como é natural na própria humanidade. Agora confortável como um dos fundadores da United Artists e com estúdio próprio, Chaplin resolveu ir além das locações urbanas ou rurais de suas aventuras anteriores. O processo começou através de uma chocante fotografia apresentada pela amiga estrela Mary Pickford: uma fila gigantesca de homens subindo as montanhas de neve de Klondike, durante o surto da mineração no final do século anterior. Ali estava o contexto ideal para seu épico, "o maior de todos!" - como começou a anunciar, em voz e cartazes, todo orgulhoso.




As gravações começaram na neve mesmo, na mesma Klondike ao norte do Canadá da tal fotografia. Chaplin, que já assumia roteiro, direção e produção de seus próprios filmes, usou a moral altíssima para convocar cerca de 600 figurantes (!!!) para reproduzir a imagem que o fascinou. E conseguiu. As cenas que abrem "The Gold Rush" não são arquivos documentais, como muitos acreditam. Figurantes, membros da equipe e moradores locais convocados por Chaplin para abrir caminho na implacável neve. Conseguiu o impacto épico em imagem, mas logo entendeu que realizar o filme in loco seria puramente inviável. A partir daquele prólogo arrepiante, tudo volta para o estúdio. O que trouxe desafio maior; recriar o Alasca implacável num estúdio grandioso e quente de… Los Angeles, Califórnia. 


Spoiler: funcionou. Realizar as filmagens dentro de um estúdio foi uma cara conquista que permitiu a Chaplin enquadrar algumas de suas mais belas e climáticas composições de cena. A câmera fiel de Roland Totheroh, seu fotógrafo oficial de confiança, poucas vezes captou imagens tão bonitas e ilustrativas. As cartelas de diálogos ou comentários são puro luxo narrativo - os enquadramentos e recortes comunicam TUDO, e nos guiam por uma experiência sensorial absurda, atemporal. Em toda obra de Charlie Chaplin, é seu maior espetáculo visual. Talvez até narrativo. Chaplin ousa se permitir sequências agitadas de ação, momentos de puro horror visual, outros orgulhosamente românticos. A chocante cena que ilustra a "justiça implacável do Norte" é das mais fortes já assistidas num filme silencioso. A tragédia humana domina a tela em diversos instantes. Porém o desfile de tons e gêneros são sempre ligados e pontuados pelo humor inteligente e involuntário que garante a presença de "Em Busca do Ouro" em qualquer lista das Melhores Comédias. É, provavelmente, o filme mais versátil e completo de Charlie Chaplin. Essa frase traz consigo muita responsa. 



É natural que se destaque uma das sequências mais célebres e inesquecíveis: no limite da fome, seu "Lone Prospector" cozinha dedicadamente a bota de couro, colocada à mesa como delicioso prato de comida. O grandalhão Big Jim, vivido por Mack Swain, velho parceiro de curtinhas da Keystone, intimida o pequetito protagonista e rouba "a parte nobre" do calçado. Sobram para Chaplin a sola e seus pregos, saboreados como espinhas de um peixe suculento. Ele garante também os cadarços, degustados como espaguete de qualidade. Pouco adiante, o mesmo Big Jim delirante de fome passa a ver nosso amigo Chaplin como uma galinha de proporções aumentadas e movimentos realistas. Existem muitas outras travessuras visuais e estéticas que me levam a confirmar: é dos filmes mais surrealistas jamais lançados. Tão acessível e carismático que muitos críticos e cinéfilos nem se dão conta disso. As imagens comprovam. Surrealismo puro, afinado ao riso. 



Como citamos a presença do Romance, a protagonista vivida por Georgia Hale merece destaque e um parágrafo só pra ela. Até então, a grande "musa" de Chaplin vinha sendo Edna Purviance, parceira fiel em mais de uma dezena de curtas brilhantes e alçada ao posto de protagonista no dramático (fracasso de público) "A Woman of Paris" - que o cineasta apenas dirigiu em 1923, cometendo a ousadia de não dar as caras (ou bigode)! Aos fãs seria muito natural reencontrar o rosto angelical de Purviance numa nova produção de Charlie Chaplin.   Ela estava lá em "O Garoto", afinal. Mas sua figura "pura" e muitas vezes inocente/indefesa não teria vez naquele projeto de proporções tão ousadas. Eis que surge a Georgia (de) Hale. Mulher de temperamento forte, quase arrogante, decidida a não cair em cortejos fáceis e ainda agressiva com os mais insistentes. Pior: um interesse platônico do protagonista que chega a brincar com seu emocional, longe de corresponder seu desejo e paixão. Para o público de 1925, uma personagem feminina incrivelmente chocante para uma comédia. Orgulhosamente chocante. Em quase nenhum momento atriz e persona se esforçam para conquistar o carinho de quem assiste. Ainda assim, é impossível de não se apaixonar. Simples: o que nos leva ao fascínio e hipnose é a paixão autêntica nos olhos e corpo de Chaplin. Mais uma prova evidente de que ele foi um dos maiores atores já captados por uma câmera. Cada detalhe de sua postura, cada intenção presente no dedo mindinho ou no fluxo de um suspiro.  Um leve sorriso que lhe escapa, o seu corpo em reações diretas à presença de Georgia. Um assombro, que me lembra de quando perguntaram ao polaco Vaslav Nijinski como era ser o maior bailarino do século, A resposta foi: "vocês devem perguntar isso para Charlie Chaplin". 


É esquisito pensar que, ao relançar o filme nos cinemas em 1942, o próprio Chaplin tenha escolhido cortar mais de 20 minutos da duração original. Para piorar, dessa vez com uma narração na própria voz (!), explicando motivações e diálogos sem o recurso das cartelas. Esquisitísismo. Infelizmente, essa é a versão mais divulgada e editada em DVDs. Corta o impacto fortíssimo das imagens no original, e ainda comete o crime de jogar fora o final original. Finalmente reunido com sua desejada Georgia num contexto hilariamente inusitado, os dois posam para uma foto e não resistem à distância entre os rostos. Um dos beijos mais fotogênicos do Cinema e da obra de Chaplin, num raríssimo final feliz e travesso. Tal beijaço não existe nessa versão de 1942. Fofocas (sempre elas!) afirmam que o corte visava aplacar os rumores tardios sobre o caso que teria surgido entre Chaplin e sua protagonista durante as filmagens. Vale lembar que, na época, Chaplin estava casado com a jovem Lita Grey, originalmente dona do papel até… engravidar do moço. Georgia Hale até deu entrevistas sobre   o suposto romance, defendido por ela até sua morte em 1985. Se a obra é uma coleção de UAUs, os bastidores são coleções de VISHs. O texto já está longo, sigamos a alguma conclusão. 



"Em Busca do Ouro" é uma coleção de planos lindíssimos, uma ode à condição humana por um dos cineastas mais sensíveis e poéticos que já pisaram num set. Diferente de obras mais famosas de Chaplin, esse abusa de closes dramáticos, iluminação onírica e calma contemplativa que apenas reforça a potência de cada enquadramento. Tudo aquilo em mil novecentos e vinte e cinco. Beira o inacreditável, como um casarão ventando travesso no limite do precipício. Listas e artigos acadêmicos tendem a apontar "Luzes da Cidade" (1931) e "Tempos Modernos" (1936) como as obras definitivas da vida de Charlie Chaplin. Já é quase costume, um clichê abraçado por escolas e faculdades de Cinema. Sobre isso, digo e repito: descubra "The Gold Rush". Fuja da versão falada de 1942, mergulhe no original de 1925.

Eu poderia esperar mais dois aninhos para escrever uma grande celebração pelo centenário de "Em Busca do Ouro". E aí seria apenas mais um texto sobre os 100 anos desse filme. Escrevo aqui da plena emoção transbordante e íntima de revisitar essa obra que, aos 98 aninhos, segue encharcada de Humanidade atemporal, universal. O cineasta francês Jean Cocteau, também poeta, certa vez escreveu que esse filme "é a luz da vela em um Natal triste, que ilumina o espaço e nos lembra de sorrir". Eu acho até vacilo tentar escrever mais qualquer coisa depois de algo assim. Termino descrevendo o final da sessão na Sala 1 com cerca de 100 pessoas no Estação Botafogo: risadas altas ao longo de toda projeção, aplausos e gritinhos pra tela diante do "The End". Ninguém da equipe estava presente, muito menos o cineasta/astro principal. Foram aplaudidos como se estivessem. Magia. Efeito semelhante ao que senti naquela primeira sessão numa madrugada de 2005. "Em Busca do Ouro" sempre será o marco zero de minha carreira ali oficialmente iniciada. A faísca da grande explosão que se iniciou, ironicamente, no mudo. O tal Ouro do título, que veio me buscar. Meu bilhete dourado. 




quinta-feira, 13 de abril de 2023

Quem Tem Um Sonho Não Dança - Os Embalos de "Bete Balanço" (1984)




Você já ouviu "Bete Balanço ", o hit. Mesmo que sem querer, ou sem saber. E por mais que você leitor curta a voz de Cazuza e o som do Barão Vermelho, é tragicamente possível que você nunca tenha visto "Bete Balanço". É isso mesmo. "Bete Balanço", o filme, é mais uma pérola esquecida do nosso Cinema Brasileiro, um cult abafado da nossa cultura pop. Foi lançado lá em 1984, e de imediato a trilha original ficou gigantemente mais famosa que o filme. Até hoje muita gente nem faz ideia de que ele existe. Obra como essa não ter chegado às novas gerações, ou mesmo aos cinéfilos apaixonados garimpeiros da nossa filmografia (como eu), é reflexo grave e tragiquíssimo do que é nosso Cinema, num panorama mais geral

"Bete Balanço" é um filme plenamente consciente de seu apelo, seu público, seu tempo. Planos lindíssimos e casamento maravilhoso entre Som & Imagem, orgulhosamente POP & jovem - inclusive no sentido experimental da proposta. Dá pra perceber em cada plano/corte um jovem cineasta em busca de novas linguagens e estéticas com seus carismáticos amigos-por-acaso-atores. Suspeito que se fosse com sotaque francês ou inglês, o impacto a longo prazo seria outro, o selo de "cult" garantido... Não há nada ali para se envergonhar ou desviar os olhos. Um retrato fascinante de um estado de espírito. Cores pulsantes e ritmo frenético, ao som das "novidades do momento". Barão Vermelho, Lobão, Celso Blues Boy, Titãs, cada trilha parece escrita especialmente pro filme. É narrativa, é tom, é clima. É diversão, pra balançar sem culpa.



Esse mergulho & degustação me fez voltar a cair em um nome: Lael Rodrigues, mais um injustamente enterrado pelo esquecimento coletivo que agride ele, nosso Cinema Brasileiro. Esse cara foi apaixonado por Cinema e Música desde a Juventude. Lá pelos 20 anos, foi assistente de direção do Hugo Carvana em "Vai Trabalhar, Vagabundo!" (1973) e inúmeros outros filmes dele nos anos 70. Fundou uma produtora independente com a amiga Tizuka Yamasaki, produzindo os filmes grandiosos que ela (uma gigante, hoje com 73 anos) ousava dirigir. Ali pelos 30, resolveu que era sua vez de começar a escrever e dirigir. E seu primeiro filme foi esse "Bete Balanço", que lançou a Débora Bloch e popularizou de vez a música do Barão Vermelho. Só por isso já merecia ser lembrado, assistido, celebrado até hoje. Logo na sequência emplacou "Rock Estrela" em 1985 e "Rádio Pirata" em 1987. Todos misturando marotamente Cinema & Rock, todos sucessos imediatos de público. Todos apresentando um extremo cuidado estético na elaboração dos planos, em como traduzir uma trilha forte em imagens irresistíveis e pura diversão. Lael Rodrigues não parecia ter interesse em obras difíceis, restritas aos festivais e prêmios. Cinema Brasileiro também podia ser pipocão com som no volume alto. E o cara conseguiu, nessa "trilogia" que conseguiu realizar. Eu acredito que só não tenha conseguido mais vezes porque morreu estupidamente jovem. Tinha apenas 37 anos (!!!) quando sofreu uma pancreatite aguda fatal. Como pode isso ?!?!? Deixou um filho de três meses e dois roteiros inéditos - hoje desaparecidos, nada se sabe sobre. Esquecido pelos livros, esnobado por professores, pesquisadores e documentários... apesar de ter emplacado três sucessos seguidos e sonoros .


Queria aproveitar essa análise mais profunda para deixar aqui alguns !!!!!!!!!! para o mulherão é Déborah Bloch. Vish. Ela tinha apenas 20 anos quando topou o papel-título, mas bancou a missão com carisma e presença. Uma protagonista feminina super ativa e ousada, que toma as rédeas de todas as ações determinantes no roteiro. Faz o que bem quer, do jeito que bem quer, inclusive nos momentos de tensão sexual e num ousadíssimo romance escancarado com a sofisticada diva Maria Zilda. Era beijo na boca e cena na cama pós-sexo entre duas mulheres num filme jovem e popular dos anos 80 ! Nada de cult pro circuito dos festivais: era filme jovem e livre pra fazer sucesso - e fez!  Sem falar que a Bloch solta a voz pra valer. A cena em que ela e o Cazuza descobrem a melodia de "Amor Amor" juntos é de arrepiar olhos e ouvidos. A maconha ali bem enquadrada entre os dedos era 0% vulgar, não era apologia, era uma câmera quase documental, modestamente captando aquela época tal como ela era. Eu poderia apostar que se a Déborah Bloch fosse estrela de um filme desses em outros cantos do mundo, imediatamente lançaria discos e carreira musical paralela. Por aqui, o timbre seguiu abafado.




Falando nisso de "captar uma época", esse "Bete Balanço" consegue até ser um trágico retrato de toda uma geração. Ali estão Lauro Corona e Cazuza no auge da juventude . Os dois já não existiriam uma década depois. O maior galã e o maior poeta daquela geração, precoces vítimas da AIDs - o primeiro em 1989, o segundo em 1990. Quando eu surgi em 1992, o astro, o compositor-ícone e o diretor desse filme que transpirava Juventude já não estavam aqui. E agora chegam tão perto.


Por fim, pulsa alto certo alívio de que uma figura tão expressiva, carismática e icônica quanto Cazuza tenha sido captado no auge por uma câmera tão estética e cuidadosa. Sua participação é pontual, mas não permite indiferença. Quem não o conhecia até ali, não poderia deixar de conhecer a partir do final da sessão. O filme acaba, a música-título continua. E ainda toca, quase 40 anos depois, bem alta e jovial. Quem tem um sonho não dança .





quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Encontros, Desencontros - A Nostalgia Sensorial de "Aftersun"


Primeiros dias de 2023, lá fui eu experimentar aquele tal
"Aftersun", devidamente após o pôr-do-Sol. É um filme de interiores: dentro de quartos, dentro de piscinas, dentro da intimidade de um pai e de uma filha que não se portam tanto como tais. São dois estranhos entre si, portadores de um laço maior do que todos evidentes ruídos que marca a troca. Frases fortes escapam no susto, em aparente banalidade que revela muito de cada um. São as faíscas viáveis, diante das sedutoras imagens de uma câmera orgulhosamente recortante na poética do não dito. Em certo momento, por exemplo, há um tobogã : não vemos como se chega no seu topo e nem a queda na água, apenas pessoas passando rapidamente no trajeto. É o recorte. O deslize, sem devida causa ou consequência. É sobre o que escorrega.

Ode ao Cinema sensorial, Aftersun parece esnobar qualquer curso de roteiro mais elaborado, que exigiria ordem e sentido claro para cada plano, ou respostas concretas para as tantas sugestões visuais. São lacunas íntimas sem gabarito definido - para que cada um possa completar com os próprios detalhes pessoais e familiares, ao gosto do freguês. "Olá, viaje com esses dois, venha sentir. Essa viagem é também sua". 


Uma coleção de recortes afetivos, seja em arquivos da câmera analógica nostálgica, seja em silêncios prolongados e ensurdecedores. O adulto, uma criança indefesa diante do olhar incrivelmente maduro da pequena. Contemplamos, distantes ou próximos, quase sempre em suspensão, as pequenas ações que os conectam - já que a única coisa que eles possuem em comum é o sangue. O plano mais significativo não é em nada ingênuo: uma foto analógica, posada, em cima da mesa e se revelando aos poucos. Sem pressa. Um recorte de duas pessoas recortadas pela vida. 




Deu certo: o filme é o “queridinho indie” da temporada, rendendo elogios, prêmios, até citações de "Melhor do Ano" em publicações especializadas em Cinema. Em Essência, trata de Intimidade. Laços indizíveis, que a câmera capta com zelo e afeto. Pelo visto, algo que tem sido carente ao grande público imerso nos sons e fluxos frenéticos de muitas abas abertas. Quanto tempo ainda pode durar um plano longo, sem medo e sem pressa?

Aftersun não entra na minha lista de favoritos do ano. Curiosamente, é o tipo de filme que me vejo fazendo num futuro próximo. O respeito ao tempo de cada plano, os ritmos e recortes conscientes, a busca por uma intimidade velada, o chegar perto de verdade, como se não fosse tudo ali nada mais que a própria vida. Requer imensa coragem de uma jovem cineasta, como é Charlotte Wells. Nascida na Escócia há 35 anos, ela ingressou na NYU e lá realizou três curtas: Tuesday (2015), Laps (2016) e Blue Christmas (2017). "Aftersun" é seu primeiro longa, desenvolvido num laboratório de roteiros do Festival de Sundance 2020. Por hora, ela já levou um Gotham e um British Independent Film Awards pela obra. Especialistas garantem que vem mais. 


Me pergunto motivos para não colocar Aftersun na lista dos meus favoritos recentes, mesmo mergulhado em tantos elogios e Poesia. É, de fato, o que me vejo buscando num longa-metragem, numa busca com a câmera. Talvez nossos filmes favoritos não sejam os filmes que precisamos fazer. É mais sobre a experiência/busca que o resultado em si. O filme, fechado e finalizado, está em quem vê, é sentimento indirigível. A faísca em si... Talvez só mesmo moça Charlotte saiba. Não impede que o vento bata no público. O mergulho de Aftersun certamente respinga, molha nossas roupas e nos faz refletir se já não estivemos bem ali. Como ecoa a voz isolada de David Bowie no pico dramático do filme: This Is Ourselves, Under Pressure.