sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Juventude Transviada - Bergman, Monika e o Desejo



Ingmar Bergman completaria 100 anos em 2018, e foram muitas as homenagens e celebrações à sua valiosa carreira. Extremamente influente e inovador na abordagem psico-filosófica de suas obras, o cineasta ainda é considerado intimidadoramente "cabeça" ou cult por muita gente. É compreensível que assuste à primeira vista, afinal poucos artistas exploraram a linguagem e potencial do Cinema de forma tão intensa quanto o sueco. Virou até adjetivo pra filmes "difíceis". Seu 12º longa talvez seja uma ótima "dose inicial" ao universo bergmaniano.

 Quase "realista" em abordagem e aspas, "Monika e o Desejo" trata de um jovem casal entediado com a rotina do trabalho. O Desejo do título morde Monika e atiça uma rebeldia que os leva a fugir de tudo - e vão viver a paixão intensa em uma ilha paradisíaca, sob o verão europeu. Em alguns aspectos, é um filme sobre juventude, liberdade e suas graves consequências na vida adulta. Bergman ainda desenvolvia seu olhar característico, mas já era um pessimista convicto. Sem susto: até os momentos mais densos são captados com imensa paixão que extrapola a tela. Em um momento quase banal, Monika caminha por alguns músicos de rua no que poderia ser um simples plano de passagem. A câmera então opta por um atípico close em sua reação à música, e tudo vira poesia. Bergman registra sua atriz como um observador apaixonado, e não por acaso. A visceralidade da jovem Harriet Andersson, então com 20 anos e em sua primeira protagonista, conquistou o coração do diretor. Os dois começaram um relacionamento secreto durante as gravações, evidente na paixão latente de cada plano. As sequências oníricas na ilha deserta são brechas imediatas do mundo dos sonhos. O espectador é quase convidado a um relacionamento a três, e sente o baque de cada impulso cedido. 

O filme foi lançado nos Estados Unidos com a frase publicitária "A História de Uma Garota Má", algo um tanto injusto. Monika é movida pelo desejo em sua forma mais humana e imatura, tanto que o tal desejo veio até parar no título por aqui. Melhor assim. É o Desejo que dita cada movimento da personagem e da câmera. Tudo culmina no momento em que Monika, prestes a ceder novamente ao impulso carnal, surpreende o público com um olhar direto e ousado para a câmera. Largamos todo e qualquer julgamento ao encarar o espelho em seus olhos. Isso foi em 1953. Pelo tempo que a Magia do Cinema for estudada e contagiada, aquele olhar desafiador e angustiado de Andersson permanecerá com o mesmo impacto. O contagiante impulso do tal desejo. 



domingo, 16 de dezembro de 2018

O Primeiro Tango de Bertolucci - Descobrindo A Morte




Bernardo Bertolucci nasceu fadado às Artes: a mãe era professora e o pai, respeitado poeta e historiador. Italiano de Parma, cresceu cercado de cultura e logo conheceu figuras como Pier Paolo Pasolini. Amigo da família, o cineasta o convidou para ser assistente de direção em seu primeiro longa, "Accattone" (1961). O jovem Bernardo, já então com um livro de poesias publicado, se entusiasmou com a magia do Cinema. Pouco depois, tinha em mãos um roteiro assinado pelo próprio Pasolini. Assim veio "La Commare Secca", sua primeira experiência na direção. 

O plano inicial já indica toda poesia e potência do filme: folhas e papéis voam por ruas de uma cidade ainda adormecida, até revelar o solitário cadáver de uma mulher. A trama pincela diferentes depoimentos sobre fatos do dia anterior, possíveis suspeitos e causas do assassinato. Críticos e artigos costumam ligar a estrutura ao clássico inquestionável "Rashomon", de Kurosawa. Ainda que provável inspiração, "A Morte" adota um contexto social e narrativo absolutamente diferente. Ainda sob ecos audíveis do Neorrealismo de Rosselini e De Sicca, aponta para a nova onda que marcaria obras de Antonioni, Fellini e do próprio Pasolini. Por isso mesmo, é chocante imaginar que aquela degustação visual tenha sido orquestrada por um jovem de 21 (!!) anos. 

Muito diferente da saturação de cores, ritmo pendular e sexualidade latente que se tornariam a assinatura de Bertolucci, "La Commare Secca" releva um cineasta inquieto com os possíveis laços entre Cinema e Poesia - um pouco de Pintura no meio. A câmera solta e flutuante captura rostos belos e marcantes, como o jeitão "Johnny Cash loiro" de Alfredo Leggi e a urgência juvenil de Marisa Solinas. Pouco se explica sobre seus personagens, mas são muitas (!) as imagens que ficam. Explorar essa obra inaugural à sombra de sua recente morte apenas reforça a força e brilhantismo de Bertolucci como Homem do Cinema. É inquestionável: poucos conseguiram pintar tamanha poesia com uma câmera.