segunda-feira, 7 de maio de 2012

Gênio Indomável - A Vida, a Obra e o Deboche de Orson Welles


Não basta ser genial, é preciso saber brincar com isso. Muitos diretores o fizeram, é verdade, mas nenhum chegou perto da bossa e ousadia de George Orson Welles. Sim, o primeiro nome dele era George, embora quase ninguém saiba. Da mesma forma, poucos sabem a história do homem por trás de obras singulares e inovadoras, responsável por uma das maiores obras-primas do cinema.

Em um cineclube recente, organizado para comemorar o aniversário de Welles - que faria 97 anos no dia 6 de maio -, tive a oportunidade de ver "Verdades e Mentiras"(1973), seu último filme. E todas as evidências que apontavam para sua genialidade culminaram ali. Um filme interessantíssimo, diferente e pouco comentado - razão para não ser tão conhecido e estudado como os outros do diretor. Mas o principal: é um filme extremamente personalizado. O tom, a edição, o uso dos personagens... SÓ Welles poderia tê-lo feito. Mas voltemos ao início.


Welles nasceu em Wisconsin, nos Estados Unidos de 1915. Órfão de mãe aos 9 anos e de pai aos 15, o americano teve que se virar sozinho desde cedo. Botou na cabeça que seria pintor, e assim começou a fazer quadros. Bastou receber algumas críticas negativas para largar o pincel. Afinal, nunca lidaria bem a rejeição. Partiu para os palcos, estreando aos 13 anos. E assim começaram os elogios que foram alimentando seu ego até proporções desastrosas.  Aos 18 anos, já era um ator famoso no circuito de teatro experimental. Mas ele queria mais.

E assim foi parar no New York Federal Theatre Project, onde pôde (aos 20 anos!!) estrear na direção de seu primeiro espetáculo. Pequeno detalhe: era uma versão de "Macbeth", de Shakespeare, encenada no Harlem e apenas com negros no elenco. Para os EUA da época, algo tão arriscado quanto polêmico. Mas ao invés de acabar com sua carreira, a peça só fortaleceu sua fama. Ele não parou, e em 1937 fez uma montagem de "Julio Cesar", também de Shakespeare, situada na Itália fascista. Mais polêmica, mais fama para Welles. Só que ele, como sempre, queria mais.


Além do trabalho no teatro, Welles era também conhecido por seu trabalho na rádio CBS. Sua voz marcante, uma das melhores já registradas no cinema, fazia sucesso no seriado radiofônico "O Sombra".  Welles era ainda responsável por um programa de variedades. No dia 1 de novembro de 1938, sem ter o que apresentar, ele resolveu improvisar. Sem maiores avisos, começou a adaptar o livro de H.G.Wells, "Guerra dos Mundos". Só que ele fez tudo ao vivo e como se fosse uma REAL invasão de seres de outro planeta. O noticiário parou os EUAs, enquanto todos acreditavam que alienígenas estavam realmente destruindo cidades. O pânico foi geral e muitos fugiram de casa - dizem até que alguns se suicidaram. Tudo apenas mais uma brincadeira de Orson Welles. Essa podia tê-lo levado para a cadeia. Ao invés disso, o levou para Hollywood.

Quando chegou em Hollywood, Welles era considerado um deus. Todos respeitavam e idolatravam sua mente jovem e inovadora. Seu ego apenas aumentava à medida que os estúdios lhe davam total liberdade criativa e financeira sobre seus projetos. Quando recusou dirigir a adaptação de "Guerra dos Mundos"- afinal, o romance fez sua fama! -, teve sinal verde para filmar um roteiro original, mas teria orçamento reduzido e atores desconhecidos no elenco. "Não será problema", ele pensou. Resultado: "Cidadão Kane".  Com apenas 25 anos (!!!), Welles realizou sua primeira e maior obra-prima, revolucionando o próprio cinema. Planos longos, profundidade de campo, edição rápida, uso de flashbacks... Tudo era novo. E em 2011, o filme completou 70 anos permanecendo como um dos melhores filmes da história - até mesmo O melhor, segundo alguns. 



O problema é que Welles, ego à flor da pele, peitou a indústria, o estúdio e magnatas importantes - como o milionário William Randolph Hearst, em quem o personagem Charles Foster Kane foi claramente inspirado. Ele mesmo interpretou o protagonista, para deixar bem claro quem era o responsável por aquilo tudo. Isso bastou para que todos seus financiadores passassem a boicotar sua carreira. Depois de "Cidadão Kane", Welles continuaria em Hollywood, mas sem o apoio e incentivo de antes. Seu filme seguinte, "Soberba" foi cortado pelos estúdios, o que o levou a desistir do projeto "It`s All True", que chegou a filmar no Brasil - e mais tarde virou um documentário com o material registrado.

Pior do que o boicote financeiro foi o boicote ideológico. Os filmes de Welles passaram a ser vistos como algo ilegítimo, e eram pouco valorizados. Ele tinha que finalizar tudo com dinheiro do próprio bolso, mas o reconhecimento injustamente não vinha. Até obras como "O Estranho"(1946), suspense repleto de clichês que se salvava pelo seu toque de maestria na criação de um ambiente sombrio e envolvente, era esnobado pela crítica e público. O sucesso só voltou, em menores proporções, com "A Dama de Xangai"(1947), um grande filme protagonizada por ele e sua então esposa Rita Hayworth, a eterna "Gilda".


Depois disso, sua carreira entrou em declínio, e ele só ficou marcado em mais um filme: "O Terceiro Homem"(1949) - que, apesar de muitos acharem, não foi dirigido por ele, mas por Carol Reed. Apesar de aparecer pouquíssimo tempo em cena, Welles conseguiu, com seu carisma e presença hipnótica, carregar nas costas todo o suspense dessa obra-prima. E após eternizar ali a sua imagem, passou a aparecer mais raramente no cinema. Fez obras de valor inquestionável, como "A Marca da Maldade"(1958) e "O Processo"(1962) - e ainda o "Verdades e Mentiras" citado no início do texto. Nesse último, aparecia como ele mesmo, fechando em grande estilo sua carreira de diretor.

Na frente das câmeras, a figura de um Orson Welles esbelto e galante deu lugar a um homem obeso e envelhecido, que fazia aparições ocasionais em filmes como "Moby Dick"(1956) e "Cassino Royale"(1967). Sempre com o mesmo tom debochado e superior, mas já sem o mesmo brilho. E desmotivado com a indústria e beleza que o deixaram de lado, passou a usar a úncia coisa que ainda era agradável e única: sua voz. Seu último trabalho foi como dublador do desenho "Transformers"... Perdido no meio de seus inúmeros projetos nunca realizados ou concluídos, teve um ataque cardíaco fatal em 1985. Tinha apenas 70 anos, mas o visual denunciava alguém que já tivera muitas conquistas e vivia amargurado por tê-las deixado fugir pelas próprias mãos.


Agora, quase 30 anos após sua morte, chega ao país a mostra "O Legado de Orson Welles", que visa apresentar as obras desse diretor para novas platéias. Mais do que isso, livros, exposições e estudos continuam evidenciando diariamente o valor de seu trabalho para o cinema mundial. Já não há mais dúvidas quanto a isso. Agora só falta o grande público descobrir que Orson Welles é muito mais do que "Cidadão Kane"- o que, cá entre nós, já seria motivo de orgulho para qualquer um. Só que não basta ser genial, é preciso saber brincar com isso. Ele, definitivamente, sabia.