quarta-feira, 26 de setembro de 2018

A Nova Onda de Orson Welles em "A Marca da Maldade"






Imagine a tradição do Cinema Noir americano com uma abordagem autoral e repleta de experimentações visuais. Assim é "Touch Of Evil", a última tentativa de Orson Welles de explorar a linguagem cinematográfica em Hollywood. Baseado livremente no livro "Badge of Evil" de Whit Masterson, o roteiro foi escrito pelo próprio Welles - que ainda reservou para si o melhor papel da trama. Aos 43 anos, o cineasta aparece inchado como o rabugento e manco policial Hank Quinlan. Dono de personalidade ambígua e repleto de frases de efeito, talvez seja o mais icônico entre os papéis que assumiu - e estamos falando do homem que viveu Charles Foster Kane! Ele quase ofusca a dupla Charlton Heston, versátil como um "guardião da lei" de origem mexicana, e Janet Leigh pré-"Psicose". Ela, aliás, tem nesse filme os primeiros problemas com hotéis vazios em estradas. Mal sabia ela… 

Para injetar mais climão cult ao projeto, Welles convocou o habitual amigo Joseph Cotten para uma aparição não creditada e insistiu para que a eterna diva Marlene Dietrich fizesse uma participação especial. Bastam apenas três cenas para que o olhar penetrante da alemã permeie todos os frames. É chocante conferir que ela tinha 57 anos durante as gravações, tamanha a juventude (ou atemporalidade) em seu rosto. O pôster também tem o mérito de destacar o maltês Joseph Calleia, discreto coadjuvante que é o mais complexo e fascinante personagem do pacote! 

"Touch Of Evil" é um filme nervoso, de muitos acontecimentos e viradas. A ambientação na fronteira com o México permite que aborde Preconceito e Ética como poucos ousavam no período. Usa um crime como gatilho para expor a arrogância humana, e não são poucos os momentos semelhantes à ataques entre animais.  A câmera opta por ângulos inusitados e seus movimentos ajudam na impressão de ação constante. Muito da essência mágica do Cinema está no longo e ousadíssimo plano inicial de quase quatro minutos, que apresenta todas faíscas e dilemas da trama. "Só quatro minutos"? Acredite, muito acontece naqueles quatro minutos. 

É uma obra filmada e decupada como se um jovem diretor estivesse enfim realizando seu sonhado primeiro longa. Com Orson Welles, nunca deixou de ser assim. Esse uso mais solto e "rebelde" da câmera, combinado ao som vivo como ferramenta narrativa, assustaram os produtores do estúdio. Welles foi afastado do processo de edição e convidado apenas para uma sessão próxima à data de estreia. Ao chegar em casa, escreveu enfurecidas 60 páginas aos responsáveis pela distribuição, que pouco respeitaram sua visão. Recebido friamente nos Estados Unidos, "A Marca da Maldade" foi um sucesso estrondoso na Europa. Jovens críticos como uns certos Jean-Luc Godard e François Truffaut se referiam ao filme como obra-prima e há boatos que tenha deixado ecos na Nouvelle Vague que ali nascia. Foi a última vez que Welles prestou contas a Hollywood. O americano se mudou para a Europa e nunca mais gravou em seu país natal. A partir dali mergulharia em projetos ainda mais autorais e atípicos, sempre como um jovem diretor sedendo por seu sonhado primeiro filme.