segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Ligações Perigosas - O Discreto Charme de Uma Injustiçada Obra-Prima Chamada "Barry Lyndon"


  

Você, caro leitor, certamente já ouviu falar no nome de Kubrick. Mas é provável que nunca tenha ouvido falar no filme aqui analisado. Isso porque os ensaios e textos sobre a genialidade de Stanley Kubrick (1928-1999) - e sua inegável importância para o cinema - raramente fazem citações a “Barry Lyndon”. Lançado em 1975, o filme é um dos menos valorizados e discutidos trabalhos do diretor americano. Tal tratamento é sem dúvida injusto, tamanha sua beleza e, principalmente, inovação para a época de lançamento. Duvida? Então vamos lá.

Em sua concepção do projeto, Kubrick se inspirou completamente em pinturas e paisagens do século XVIII, para através delas transmitir o estado de espírito da época. A partir disso, o posicionamento dos atores passou a combinar com o planejamento de cena de modo a compor verdadeiros quadros em movimento. Durante as 3 horas de exibição, em vários momentos acreditamos observar telas de pintores da época, tamanho lirismo e beleza captados. Os discretos movimentos dos atores são a prova de que se trata de um filme brilhantemente filmado.


A iluminação natural corajosamente escolhida por Kubrick e pelo diretor de fotografia John Alcott é composta apenas de luz solar – na chamada “hora mágica” do dia – e de luz de velas, cujo efeito nos leva a pensar que cada fotograma foi pintado a óleo. Além disso, Kubrick revolucionou o uso de câmeras na captação de movimentos. Da mesma forma que James Cameron idealizou e ajudou a criar as câmeras em 3D que possibilitariam seu “Avatar”(2009), Kubrick teve determinante importância na criação da SteadiCam. Consagrada um ano mais tarde na famosa cena de treinamento de “Rocky – O Lutador” (1976), foi em “Barry Lyndon” que a câmera teve seu primeiro teste e utilização. Graças a isso, cenas como a marcha dos Exércitos Britânico / Prussiano e a volta de Lord Bullingdon ao castelo de sua mãe ficaram eternizadas de forma única.

A interpretação contida de Ryan O’Neal se adequa bem ao personagem que vai se modelando nos ambientes de acordo com seus interesses. Insolente, mentiroso, manipulador e inescrupuloso, seu protagonista Redmond Barry se defende sob o argumento de que “apenas age como as outras pessoas, por não ter um bom exemplo a seguir”. É nessa frieza e indiferença que repousa o charme do personagem. Seu egoísmo e relação de “amor e ódio” com as mulheres evoca o Charles Foster Kane de Orson Welles e o Michael Corleone de Al Pacino – não à toa, dois dos mais interessantes personagens do cinema.


Apesar de ser um filme bem longo, em nenhum momento a narrativa se torna lenta ou arrastada. A narração em off não diegética (“de Deus”) é a responsável pelas críticas sociais e pelo humor negro, ditando o ritmo ágil da produção. E o romance de William Makepeace Thackeray  - adaptado pelo próprio Kubrick para as telas - dosa drama de época, épico de guerra, thriller de espionagem e comédia de costumes da forma neutra e eficiente que o diretor já havia apresentado em seus filmes anteriores.
 
O conto sobre ascensão e declínio social do personagem-título tem também uma das melhores reconstituições de época da história do cinema, servindo como inspiração para todos os posteriores filmes de época. “Amadeus”(1984), obra-prima incontestável de Milos Forman, bebe direto da fonte de “Barry Lyndon”. Isso se dá inclusive na escolha do elenco de atores pouco conhecidos com rostos extremamente marcantes, que parecem saídos de pinturas clássicas e até mesmo surrealistas, como é o caso do vigarista Chevalier de Balibari (Patrick Magee), de Sir Charles Lyndon (Frank Middlemass) e do reverendo Runt (Murray Melvin) personagens que parecem saídos da imaginação de Federico Fellini (1920-1993). Isso reforça o filme como um espetáculo visual, onde olhares e gestos dizem muito mais que palavras.


Além dos 4 merecidos Oscar que venceu – Direção de Arte, Fotografia, Trilha Sonora e Figurino -, pouco restou de prestígio e reconhecimento a “Barry Lyndon”, injustamente tratado como uma obra menor na essencial filmografia de Stanley Kubrick. O aclamado crítico de cinema Roger Ebert adicionou o filme à sua lista Great Movies em Setembro de 2009. O diretor americano Martin Scorsese já indicou a produção como um de seus títulos favoritos, pela sua intensa experiência emocional. Mesmo que muitos apontem os personagens do filme como frios e “congelados”, é exatamente nesse ponto que repousa a alegoria psicológica do homem ocidental geniosamente orquestrada pelo cineasta que, atráves de suas imagens e cenas inesquecíveis, nos ensinou a observar as ações ao nosso redor para entender a nós mesmos. Seja em histórias do presente, do futuro ou, no caso, do passado. Um filme que definitivamente merece a alcunha de “genial” que nunca faltou ao seu idealizador.


PS: Essa matéria foi escrita em Dezembro de 2011, e foi com ela que consegui ganhar uma bolsa integral para estudar Técnicas de Direção na Academia Internacional de Cinema de São Paulo. Fica aqui um "Muito Obrigado" ao grande mestre Kubrick por me inspirar nessas horas!