sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Oh! You Pretty Things - Uma Aventura Sensorial com Yorgos & Emma!



Fevereiro de 2024, e nesse exato instante muitas pessoas estão escrevendo sobre o impacto de ter assistido "Pobres Criaturas", o novo filme do cineasta grego Yorgos Lanthimos. Serão inúmeros textos de críticos profissionais, cinéfilos amadores, gente que faz Cinema, gente que estuda Cinema, gente que apenas gosta de Cinema (de vez em quando), gente que amou a experiência, gente que odiou cada segundo daquelas duas horas e vinte e dois minutos de projeção. E aqui está mais uma coleção de palavras para tentar expressar o que claramente é de Sentir . 

Para resumir em termos práticos e breves: num mundo minimamente justo, "Poor Things" seria (em unanimidade coletiva, popular e acadêmica) A maior experiência cinematográfica definitiva do ano. Pelo menos do último ano, ou dos últimos recentes. Isso para além de qualquer Oscar ou prêmio ""oficial"" que o filme deixará de ganhar - embora o Festival de Veneza tenha garantido o Leão de Ouro (prêmio máximo do evento) à obra lááá em Setembro. Voltando ao ponto: é para além disso. 

É preciso concordar que o filme é bizarro, delirante, brutal, violentíssimo, um tanto quanto sexual, grotesco, chocante, e ainda assim - por uma brilhante dosagem disso tudo -, uma das experiências audiovisuais mais catárticas e fascinantes do Cinema no Século 21. E tudo isso abraçando com vontade o Século passado: grande parte do filme evoca a estética da centenária fase muda do cinema, os ecos barrocos das pinturas e figurinos de outras eras, os traços hipnóticos de Art Nouveau, as cores explosivas de desenhos animados, os ecos gritantes da Música Minimalista, a ausência de limites do Surrealismo. O filme se porta, portanto, como uma celebração de todas as formas de Arte. E ali, no meio de toda aquela bagunça audiovisual, a essência narrativa está na "boa" e velha Condição Humana - ora ora, novamente.



Um breve histórico: o grego Georgios "Yorgos" Lanthimos (o apelido veio da pronúncia), orgulhosamente excêntrico desde a juventude em Atenas, chamou atenção das antenas cinéfilas com as cenas absurdas de "Dogtooth" (2009) e "Attenberg" (2010). Já começou a colecionar prêmios europeus. Foi bem nessa época que leu "Poor Things", obscuro livro que o escocês Alasdair Gray lançou em 1992. Ele foi até Glasgow em busca do autor e, após alguns drinques e caminhadas pela região, conquistou sua confiança. O veterano lhe deu a bênção e autorizou uma adaptação para o Cinema. Mas não seria assim tão fácil - tanto que o criador não viveu para conferir o resultado, morrendo aos 85 anos em 2019. Ainda que fascinado pelo material original, Lanthimos não queria adotar uma abordagem realista como a do livro. Sua intenção era criar um universo à parte. Filmar um estado de Sonho & Delírio. Ainda não dava. Pouco depois, ele começou a "conquistar o mundo" com seus projetos em língua inglesa. Conseguiu emplacar "The Lobster" (2015) e "The Killing of a Sacred Deer" (2017) nos principais festivais do mundo. E enfim chegou ao Oscar, com o queridinho cult "The Favourite" garantindo a surpreendente (e merecida) estatueta de Melhor Atriz a Olivia Colman. Pronto. Yorgos Lanthimos estava na posição de ousar o que bem quisesse. 


Seu último premiadíssimo filme trouxe algo além dos prêmios e "sinal verde": a atriz americana Emma Stone. Embora então com apenas 29 anos, a moça nascida no Arizona já tinha moral na indústria e um Oscar na bolsa por "La La Land" (2017). Fascinada com o trabalho do diretor no processo de "A Favorita", moça Emma quis garantir presença em suas futuras aventuras cinematográficas. Moço Yorgos também gostou da troca e logo mencionou… o tal livro. "Poor Things". Nome forte. Personagem mais forte ainda. Urgência. Tinha que acontecer. Emma Stone mais do que topou: virou uma das produtoras do futuro filme, já em processo de acontecer. E aconteceu. Com o time certo. Que bom. 


Por mais que evoque "ecos de antigamente", o filme lançado em 2023 não possui um Tempo-Espaço definido. Nem interessava ter. Até na realização, o processo misturou técnicas distintas e alcança um equilíbrio perfeito entre maquetes em miniatura, pinturas de fundo, efeitos práticos, proporções gigantescas, sutis doses de computação gráfica. Até a característica "lente olho de peixe" que o diretor insiste usar em seus filmes finalmente faz pleno e absoluto sentido. Em certos momentos parece uma experiência 3D em imersão e interação com os cenários - dá pra quase sentir o perfume. Em impacto visual, é muito mais "Metropolis" que "Avatar". E deixa evidente, gritante, que o maior efeito especial em quadro são os atores. É um tom ousadíssimo de animação lisérgica para adultos que o elenco BANCA com imenso brilho. É um deleite acompanhar Willem Dafoe num papel sob medida para sua excêntrica presença. Divertidíssimo se chocar com Mark Ruffalo numa composição que beira a canastrice em carisma contagiante. A figura sinistra e atordoante da Shakespeareana Kathryn Hunter. E para os cinéfilos cults de plantão, há ainda uma aparição luxuosa de Hanna Schygulla, a musa maior de Fassbinder, o rosto dourado de "O Casamento de Maria Braun" (1978) e "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant" (1972). Sumida das telonas há tempos, a polaca retorna exuberante e hipnótica aos 80 anos, em personagem pontual e suficiente para instigar alguns "uau, preciso saber quem é esta mulher!!" no público. 



Fiz aqui um parágrafo à parte todinho para a performance de Emily Jean Stone. Agora com 35 anos, com cerca de 32-33 quando interpretou Bella Baxter para o filme, a mulher já tem Oscar da Academia, sim, ok ok. E merecia todos os prêmios da categoria esse ano, sim, ok ok ok. Basta ter em mente que, ao compor o avanço progressivo do estado de sua personagem ao longo dos 142 minutos de filme, moça Emma muitas vezes precisou gravar cenas fora da ordem cronológica. E até o mais técnico engenheiro civil ou dedicado dentista, sem nenhuma aula de atuação na existência, pode compreender o quão complexa é a construção e entrega da atriz em cada segundo que está em cena. É corpo, é olhar, é gestual, é som, é sombra e sonho da performance que mais exigiu de seu (evidente) talento dramático. Uma entrega visceral inclusive de corpo, em desafiadoras sequências voltadas à descoberta (e delírio) do Sexo. Sempre um tema tabu, sempre a insistência na manchete. Santo Vish. Não é meu lugar de fala opinar sobre a Presença Feminina na tela do Cinema, ou "a exploração do sexo nos filmes". Porém, cá entre nós, realmente não é sobre isso. Não conversei com moça Emma nem com moço Yorgos, mas seu filme me parece uma celebração de uma mulher se descobrindo na liberdade do existir - mesmo que, para isso, lide com alguns obstáculos + julgamentos chatos & retrógrados do "existir em sociedade". E nesse quesito, o aparente visual de época rima de forma irritante com a mentalidade conservadora do 2024 em que o filme é exibido. Ainda (?!?). O que seria mais radical e libertário e bem-vindo (!) que uma personagem feminina gigantesca em plena sintonia com uma grande atriz e um grande diretor que a desejam exatamente GIGANTESCA? "Poor Things" é o maior triunfo da carreira de Emma Stone e de Yorgos Lanthimos em suas vidas dedicadas à Arte. Um ousado e corajoso salto de mãos dadas. 



Desde o primeiro minuto de exibição até os segundos derradeiros de projeção, até o visual dos créditos iniciais/finais não nos permite esquecer que estamos diante de uma experiência grandiosa. A trilha sonora original do americano Jerskin Fendrix está indicada ao Oscar e, ao que tudo indica, já ganhou o prêmio do meu coração - afinal de contas o filme já acabou e ela cisma em continuar me acompanhando. A cada foto de divulgação ou menção ao nome, suas notas oníricas retornam e me fazem lembrar do que seria o podcast de um sonho. E aí o mais banal-mínimo som ao redor se apresenta com novas possibilidades promissoras. Gotas de chuva à janela me chamam em melodia. Fendrix rima com Hendrix. Faz sentido. 


Falando em "sentido", palavra arriscada, muito ainda será escrito, refletido, deduzido sobre "Poor Things", o filme, a obra. Um mero texto não daria conta. Me parece muito difícil colocar aqui um ponto final, da mesma forma que se provou desafiador levantar da Sala 1 do Estação NET Botafogo após a sessão. Cito lááá no topo a canção "Oh! You Pretty Things", composta/gravada por David Bowie em 1971 - por rimar com o título e com o universo do filme. Não seria surpresa cruzar com um Bowie ali entre as cenas; trata-se do mesmo universo à parte que ele nos convidava a visitar com frequência, sonoramente. Em todo caso, o mesmo sentimento flutuante que ali tive, naquela sala escura, de imediato: a dormência de limites expandidos. Pobres Criaturas, nós, de volta à realidade. 








* fala sério: "Poor Things" podia ser o nome perfeito para a banda indie cult dessa duplinha aí. Sonoridade épica delirante de uma noite de sexo intensa entre Bowie & Björk com Philip Glass nos arranjos. Que venham mais Aventuras Sensoriais com Yorgos & Emma!