terça-feira, 24 de setembro de 2019

Era Uma Vez no Sertão - A Máxima Inteligência de "Bacurau"




O Cinema Brasileiro, a História nos comprova, sempre teve um inimigo implacável: o grande público brasileiro. É uma cruel verdade, precisamos concordar. Qualidade nunca nos faltou, e um rápido passeio por nossa filmografia revela indiscutíveis obras brilhantes de impacto internacional. Porém nossa produção nacional sofre com o esquecimento coletivo e falta de curiosidade geral. Nomes fundamentais como Carmen Santos, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade e Humberto Mauro seguem esnobados pelo público moderno - enquanto lendas vivas como Walter Lima Jr., Ruy Guerra e Helena Ignez seguem em plena atividade sem a devida ovação popular. Não irei me alongar sobre o notório descaso cultural. Fato é que o nome de Kleber Mendonça Filho surge como um feliz caso à parte. Além de cineasta apaixonado e com assinatura própria, o pernambucano é inteligentíssimo. "Bacurau" é uma prova cabal disso. Explico, e para isso parto de uma idéia bem simples. O grande público brasileiro, o mesmo que desde sempre esnoba filmes nacionais em cartaz, gosta mesmo é de Cinema Americano. Qualquer pesquisa básica pode comprovar que mais de 70% dos espectadores do país gostam mesmo é de filme "made in USA" - seja pelo alto orçamento com linguagem acelerada ou pelo jeitão cult de produção independente que ganha Oscar. Não faz diferença, o importante é ser americano - e com isso não tem Cinema Europeu premiado que possa competir. "OK", é um reflexo cultural de muitos fatores históricos do último século. Diante disso tudo, entra o brilhantismo e inteligência de "Bacurau". 


Kleber Mendonça Filho, já respeitado crítico de Cinema, conquistou a "bolha artística" e diversos prêmios mundiais com sua obra. Cinco curtas-metragens, um longa documental e dois de ficção. Esses dois últimos, "O Som ao Redor" (2012) e "Aquarius" (2016), ilustraram em escala internacional seu estilo narrativo atípico, repleto de signos visuais e personagens autênticos. Tudo muito genuinamente brasileiro. Entre todos esses títulos, "Bacurau" sem sombra de dúvida, é a maior bilheteria e repercussão interna de Kleber Mendonça Filho, com sessões lotadas e boca-a-boca incansável. O famoso "É um filmaço, nem parece filme brasileiro!", frase muito desagradável que continuam a gritar por aí. O motivo para isso é compreensível: "Bacurau" é orgulhosamente Cinema Americano. E um filmaço, sim. O cineasta-autor teve a máxima esperteza e brilhantismo de fazer um western moderno, com bastante espaço para doses de ação violenta e críticas político-sociais. Algo que John Ford e Howard Hawks muito bem ensinaram lá na metade do século passado. Caso os ecos americanos não estivessem altos o suficiente, dá-se um jeito até de colocar disco-voador (!) na parada. "Bacurau" é tão orgulhosamente Cinema Americano que literalmente tem inglês no meio. A genial jogada de mestre é que essas escolhas são conscientes e nunca gratuitas. "Bacurau" é orgulhosamente Cinema Americano, mas com legítima roupagem brasileira. Todas cenas exalam e pulsam o Brasil do agora. E aqui vale um destaque especial: em seu terceiro longa de ficção, o cineasta pela primeira vez divide os créditos de direção com Juliano Dornelles, Diretor de Arte de quase todos seus filmes. Essa simbólica união criativa apenas reforça a importância da estética em "Bacurau". Um filme orgulhosamente Americano, porém muito orgulhosamente Brasileiro em sua ambientação, nos personagens regionais, na MPB arrepiante da trilha, no contexto político e social, no tom urgente. "Bacurau" é um fenômeno: um filme americano orgulhosamente brasileiro. Não é sempre que um ícone marcante como Sônia Braga convida a persona internacional de Udo Kier para um suco de caju. Abraçar esse tom e narrativa com tamanha propriedade é de se admirar e aplaudir de pé mesmo. 

Essa espécie de "Era Uma Vez no Sertão" parece muito mais uma obra de Quentin Tarantino que seu nono filme recém-lançado. E aí o público brasileiro que iria lotar salas pra ver Tarantino se surpreende diante de "Bacurau" e solta aquele "Ué, nem parece filme brasileiro!". Mas é, e Orgulhosamente Brasileiro. "Bacurau" conquistou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, o que deve ser muito celebrado. Porém muito acima disso, a sagacidade da parceria Kleber Mendonça Filho & Juliano Dornelles conquistou uma parcela do público que normalmente desprezaria tal lançamento nacional. A bilheteria superou 2 milhões de reais na primeira semana, uma vitória muito além dos números. A cada explosão de violência Tarantinesca, há um símbolo genuinamente brasileiro em destaque. Sejam os ecos do cangaço, sejam os santos regionais, seja uma mão em forma de sangue na parede. Quer metáfora visual mais eficaz para o país? Poucos filmes conseguiram ser tão orgulhosamente brasileiros. Para evitar ou alimentar discussões, muito simples: vá assistir "Bacurau". E se for, vá na paz.