terça-feira, 18 de junho de 2013

"E La Nave Va..." - A Força de "O Encouraçado Potemkin" nos Tempos Modernos


A ironia não podia ser maior, nem o clima mais propício. Em um raro - e muito bem-vindo - momento em que  o povo brasileiro resolve unir forças para fazer protestos e movimentos contra o governo, o Theatro Municipal anunciou a exibição especial de "O Encouraçado Potemkin", obra-prima de Serguei Eisenstein. Lançado em 1925 para comemorar os 20 anos do início da Revolução Russa, o filme é um marco da história do cinema e da abordagem política nas telas.

O clima ainda era calmo no Centro do Rio de Janeiro na noite em que o filme foi exibido - no caso, o dia 15 de junho de 2013. Apenas dois dias depois, uma manifestação popular faria história no mesmo cenário, onde mais de 100 mil pessoas - na maioria jovens - se reuniram e ocuparam toda Avenida Rio Branco em um dos maiores protestos pacíficos da história do país - sem dúvida, um dos mais bonitos e inspiradores. Talvez não por acaso, uma grande presença de jovens e estudantes podia ser notada na sala do Municipal na noite daquele sábado.


Deixando um pouco as questões brasileiras, vamos ao filme. Eisenstein, um dos cineastas mais cultuados do século XX, já tinha mostrado sua preferência em juntar o discurso político com o cinematográfico em "A Greve" (1924). Mais do que uma trama definida com personagens individualizados, os filmes do cineasta russo apresentavam uma proposta até então inovadora: através de símbolos e imagens, buscava criar ideias na mente de seu público. Era um cinema engajado, que visava a participação do povo em decifrá-lo. Pela apresentação de uma tese e de uma antítese, deveria ser criada uma síntese na cabeça do espectador. E assim, Eisenstein revolucionou a edição no cinema, através da chamada "Montagem Dialética" - que se tornaria a principal marca do Construtivismo Soviético, que tem nele seu maior representante.

Em 1925, então com 27 anos, Eisenstein recebeu uma encomenda especial: o convite para fazer um filme em comemoração à revolução iniciada em 1905. Era a partida para a realização de sua obra mais estudada. Pegando como base o caso real de um motim ocorrido a bordo do encouraçado Potemkin da Esquadra do Mar Negro, o diretor começou a orquestrar toda sua adaptação em torno daquele fato. O navio representaria a nação, os marinheiros insatisfeitos o seu povo, os capitães cruéis o governo autoritário. Até mesmo a religião seria representada de forma simbólica  - e um tanto irônica. Em um momento em que Hollywood se firmava com suas super produções apoiadas no carisma de astros famosos, em que a Alemanha focava em seu pessimista e alucinante Expressionismo e a França experimentava novas abordagens através de Vanguardas, Eisenstein orquestrava um verdadeiro manifesto na União Soviética. Quando um dos marinheiros, cansado das humilhações e condições de vida, resolve quebrar o prato que devia limpar (veja aqui a cena), os olhos do mundo inteiro se voltaram para aquelas imagens. Tudo bem que a edição fragmentada do diretor reforça o impacto da cena, mas o mundo da primeira metade daquele século sabia bem qual era aquele sentimento, enfim representado no cinema.


Além da edição revolucionária e do teor político, "O Encouraçado Potemkin" ainda possui uma das sequências mais chocantes e estudadas de toda história da sétima arte: o massacre da escadaria de Odessa. Baseada no episódio real conhecido como "Domingo Sangrento" - em que o exército do czar abriu fogo contra a multidão de homens, mulheres, crianças e idosos que protestavam pacificamente nas ruas da Rússia de 1905 - a cena ainda arrepia. Não são imagens bonitas ou leves. Em seus frenéticos cortes, podemos ver sangue, desespero, corpos de idosos, crianças e, a figura mais emblemática, o carrinho de bebê que desce as escadarias em direção à morte. Um momento tão icônico da história do cinema que está presente em qualquer compilação e continua a ser revisitado e homenageado por outros cineastas - como Brian De Palma, que fez a mais famosa "homenagem" em seu filme "Os Intocáveis"(1987). Cortes rápidos e travellings dão o ritmo acelerado que ilustra toda urgência da situação. O modo como a sequência foi registrada e editada continua surpreender e deixar os espectadores com um incômodo silêncio, um misto de horror e arrepio - sejam eles cineastas, historiadores ou simplesmente humanos. Mais do que a história do cinema, é a história do século XX diante de nossos olhos. Inclusive, se o cinema foi a maior forma de arte do século XX, foi muito graças ao senhor Serguei Eisenstein.

Ver as fortes imagens em uma tela grande no Municipal só intensifica o espetáculo. A presença da orquestra em cima do palco - ela normalmente fica no fosso, deixando o palco livre para o grande telão - acabou dividindo as atenções e tirando um pouco o destaque do filme em si, mas nada que diminua a força da iniciativa. Assistir "O Encouraçado Potemkin" devia ser obrigatório no mundo em que vivemos. Goste ou não da abordagem do diretor ou das ideologias por ele defendidas, é um registro de um dos momentos mais significativos da História Mundial Moderna - mesmo falando de quase um século atrás. Um dos poucos filmes a ser considerado Patrimônio Cultural da Humanidade, "O Encouraçado Potemkin" continua influente e inspirador em vários aspectos, sejam eles cinematográficos, sociais ou até mesmo políticos. Afinal, como não ligar o despertar dos leões de pedra da cidade durante os ataques (veja aqui a cena) com o que tem acontecido com a população brasileira nos últimos dias ?? Ao que tudo indica, o navio continua imponente no mar da História.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Muito Além das Nuvens - O Canto do Cisne de Michelangelo Antonioni


O panteão dos grandes diretores italianos que marcaram a história do cinema contém nomes importantes como Federico Fellini, Vittorio De Sica e Roberto Rossellini, apenas para citar alguns. Entre eles, figura timidamente o nome de Michelangelo Antonioni (1912-2007). Esnobado por muitos e considerado "entediante" por mais gente ainda, o cineasta nascido em Ferrara deixou sua marca na sétima arte principalmente através da chamada Trilogia da Incomunicabilidade. Formada pelos filmes "A Aventura"(sua grande obra-prima, de 1960), "A Noite" (1961) e "O Eclipse" (1962), esses filmes apresentam uma abordagem inovadora e beleza visual hipnótica que rendeu ao diretor diversos prêmios e reconhecimento ao longo da carreira. Em seu currículo estão ainda obras de imenso valor artístico, como "Blow Up - Depois Daquele Beijo" (1966) e "Profissão: Repórter" (1975).

Antonioni ficou famosos por fazer uso de planos longos e intenso uso do silêncio para ilustrar a complexidade das relações humanas. Seus filmes tinham um andamento mais lento e poético, que exigia entrega e paciência e seu público - daí o motivo de tamanha rejeição por parte dele. A carreira do diretor ia bem até ele sofrer um grave acidente vascular-cerebral em 1985. Com isso, em uma irônia do destino, o cineasta famoso por explorar o silêncio entre as pessoas perdeu a capacidade de falar. Apesar de mudo e debilitado fisicamente, Antonioni não poderia deixar de lado a paixão que o mantinha vivo. Ele tentaria superar aquilo para se manter ativo no cinema.


Na elaboração de seu novo projeto, Antonioni se uniu a um precioso e essencial aliado: o diretor alemão Wim Wenders, responsável por obras-primas como "Paris, Texas" (1984) e "Asas do Desejo" (1987). Foi no aclamado cineasta alemão (ao seu lado na foto acima) que Antonioni encontrou todo apoio e segurança necessários para levar à frente a ambiciosa missão de realizar um filme naquele estado de saúde. Além de enfraquecido pela doença, o italiano já estava com 83 anos de vida. Unir forças com Wenders, então com 50 anos e grande prestígio, foi seu grande trunfo. E assim se iniciou o projeto "Além das Nuvens".

Como já foi dito, os filmes de Antonioni eram famosos pelo silêncio - muito mais interior que exterior - que ditava o ritmo das cenas e movia os personagens. Talvez por isso mesmo seja irônico (olha a ironia aí de novo) que seu último filme fosse marcado por uma constante narração em off. A voz, no caso, é a do cineasta vivido pelo ator John Malkovich - um alter-ego explícito do próprio Antonioni. Impossibilitado de falar fora das telas, ele daria voz aos seus pensamentos através do diretor de cinema que divaga sobre as origens do processo criativo. Partindo desse artista em busca de inspiração para seu novo projeto - ecos de "8 1/2" (1963), obra-prima de Federico Fellini, amigo pessoal de Antonioni -, somos levados à encontros e desencontros que geram complexos casos de amor. E aí começa o desfile de rostos famosos na década de 90: Sophie Marceau, Jean Reno, Fanny Ardant e Peter Weller (o eterno Robocop).


Mas Antonioni reservaria a maior surpresa da produção para uma pequena sequência com cerca de cinco minutos. Nela, reuniria os grandes ícones Marcello Mastroianni e Jeanne Moreau (imagem acima). Para os admiradores e fãs de Antonioni, aquele encontro era muito mais especial: os três já haviam trabalhado juntos em "A Noite", de 1961. Naquele rápido encontro agradável e bem-humorado, o diretor adiantaria discussões e reflexões abordadas mais tarde pelo cineasta Abbas Kiarostami no filme "Cópia Fiel" (2010). Foi um dos último papéis de Mastroianni - o eterno galã italiano morreu repentinamente em 1996, em decorrência de um câncer.

 "Além das Nuvens" tem diversos núcleos dramáticos distintos, todos ligados pelo andarilho personagem de Malkovich. Embora tenha características claras de um filme de Antonioni, é impossível não perceber a mão de Wenders no andamento de algumas sequências e, principalmente, no uso da música. Ainda assim, o cuidado estético do diretor italiano está presente nos elaborados movimentos de câmera. Poucos cineastas bolavam um enquadramento tão bonito quanto os de Antonioni - e isso está bem claro nesse filme.  Mesmo não sendo um dos melhores filmes do diretor - algo difícil diante de um currículo com tantos filmaços -, "Além das Nuvens" é uma poética visão da Arte como uma força inspiradora que provém do amor e das relações entre as pessoas. Um delicado e digno canto dos cisnes para um dos maiores gênios e poetas da imagem.


 "Além das Nuvens" foi lançado em 1995. Ao invés de exaltar a colaboração entre Antonioni e Wenders, a campanha de divulgação da época preferiu focar na trilha sonora composta pela banda U2. Com relativo sucesso de público e crítica, o filme conseguiu retornar a atenção para a vida e obra de Michelangelo Antonioni. Seria seu último longa-metragem. Depois dele, mais uma vez lutando contra a idade e suas condições adversas, o diretor ainda faria, aos 92 anos, um dos segmentos do projeto "Eros"(2004) - que contava também com dois curta-metragens dos diretores Steven Soderbergh e Kar Wai Wong. Antonioni estava prestes a completar 95 anos quando morreu no dia 30 de julho de 2007 - uma última ironia do destino, que levou no mesmo dia o cineasta Ingmar Bergman, outro gigante do cinema que era um desafeto público do italiano.

Como de costume, a Academia das Artes e Ciências Cinematográficas - mais conhecida como Oscar - demoraria tempo demais a reconhecer o talento e contribuição da obra de Michelangelo Antonioni para o Cinema. A entrega do Oscar Honorário pela carreira aconteceu em 1994, pouco antes do lançamento de "Além das Nuvens". O prêmio foi introduzido por Jack Nicholson, amigo pessoal do homem que o dirigiu em "Profissão: Repórter". Acompanhado de sua esposa e porta-voz Enrica Antonioni, Michelangelo superou dificuldades para subir no palco e irrompeu o duro silêncio para agradecer seu tardio reconhecimento. Porque Cinema é emoção - e disso, definitivamente, o senhor Antonioni entendia. 

 
Veja a entrega do Oscar Honorário para Michelangelo Antonioni.