Você, caro leitor, certamente já ouviu falar no nome de Kubrick. Mas é provável que nunca tenha ouvido falar no filme aqui analisado. Isso porque os ensaios e textos sobre a genialidade de Stanley Kubrick
(1928-1999) - e sua inegável importância para o cinema - raramente fazem citações a “Barry
Lyndon”. Lançado em 1975, o filme é um dos menos valorizados e discutidos
trabalhos do diretor americano. Tal tratamento é sem dúvida injusto, tamanha
sua beleza e, principalmente, inovação para a época de lançamento. Duvida? Então vamos lá.
Em sua concepção do projeto, Kubrick se inspirou
completamente em pinturas e paisagens do século XVIII, para através delas
transmitir o estado de espírito da época. A partir disso, o posicionamento dos
atores passou a combinar com o planejamento de cena de modo a compor verdadeiros quadros
em movimento. Durante as 3 horas de exibição, em vários momentos acreditamos
observar telas de pintores da época, tamanho lirismo e beleza captados. Os
discretos movimentos dos atores são a prova de que se trata de um filme
brilhantemente filmado.
A iluminação natural
corajosamente escolhida por Kubrick e pelo diretor de fotografia John Alcott é composta apenas de luz solar
– na chamada “hora mágica” do dia – e de luz de velas, cujo efeito nos leva a
pensar que cada fotograma foi pintado a óleo. Além disso, Kubrick revolucionou
o uso de câmeras na captação de movimentos. Da mesma forma que James Cameron
idealizou e ajudou a criar as câmeras em 3D que possibilitariam seu
“Avatar”(2009), Kubrick teve determinante importância na criação da SteadiCam.
Consagrada um ano mais tarde na famosa cena de treinamento de “Rocky – O Lutador” (1976),
foi em “Barry Lyndon” que a câmera teve seu primeiro teste e utilização. Graças
a isso, cenas como a marcha dos Exércitos Britânico / Prussiano e a volta de Lord Bullingdon ao castelo
de sua mãe ficaram eternizadas de forma única.
A interpretação
contida de Ryan O’Neal se adequa bem ao personagem que vai se modelando nos
ambientes de acordo com seus interesses. Insolente, mentiroso, manipulador e
inescrupuloso, seu protagonista Redmond Barry se defende sob o argumento de que
“apenas age como as outras pessoas, por não ter um bom exemplo a seguir”. É
nessa frieza e indiferença que repousa o charme do personagem. Seu egoísmo e
relação de “amor e ódio” com as mulheres evoca o Charles Foster Kane de Orson Welles e
o Michael Corleone de Al Pacino – não à toa, dois dos mais interessantes personagens
do cinema.
Apesar de ser um
filme bem longo, em nenhum momento a narrativa se torna lenta ou arrastada. A
narração em off não diegética (“de Deus”) é a responsável pelas críticas
sociais e pelo humor negro, ditando o ritmo ágil da produção. E o romance de
William Makepeace Thackeray - adaptado
pelo próprio Kubrick para as telas - dosa drama de época, épico de guerra,
thriller de espionagem e comédia de costumes da forma neutra e eficiente que o
diretor já havia apresentado em seus filmes anteriores.
O conto sobre
ascensão e declínio social do personagem-título tem também uma das melhores
reconstituições de época da história do cinema, servindo como inspiração para
todos os posteriores filmes de época. “Amadeus”(1984), obra-prima incontestável
de Milos Forman, bebe direto da fonte de “Barry Lyndon”. Isso se dá inclusive
na escolha do elenco de atores pouco conhecidos com rostos extremamente
marcantes, que parecem saídos de pinturas clássicas e até mesmo surrealistas,
como é o caso do vigarista Chevalier de Balibari (Patrick Magee), de Sir
Charles Lyndon (Frank Middlemass)
e do reverendo Runt (Murray
Melvin) personagens que parecem saídos da imaginação de Federico Fellini (1920-1993).
Isso reforça o filme como um espetáculo visual, onde olhares e gestos dizem
muito mais que palavras.
Além dos 4 merecidos Oscar que venceu – Direção
de Arte, Fotografia, Trilha Sonora e Figurino -, pouco restou de prestígio e
reconhecimento a “Barry Lyndon”, injustamente tratado como uma obra menor na
essencial filmografia de Stanley Kubrick. O aclamado crítico de cinema Roger
Ebert adicionou o filme à sua lista Great Movies em Setembro de 2009. O
diretor americano Martin Scorsese já indicou a produção como um de seus títulos
favoritos, pela sua intensa experiência emocional. Mesmo que muitos apontem os
personagens do filme como frios e “congelados”, é exatamente nesse ponto que
repousa a alegoria psicológica do homem ocidental geniosamente orquestrada pelo
cineasta que, atráves de suas imagens e cenas inesquecíveis, nos ensinou a
observar as ações ao nosso redor para entender a nós mesmos. Seja em histórias
do presente, do futuro ou, no caso, do passado. Um filme que definitivamente merece a alcunha
de “genial” que nunca faltou ao seu idealizador.