terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Pedradas Pós Exílio - O Filme Proibido de Robert Frank & The Rolling Stones



Keith Richards fez 79 anos no último dia 18 de Dezembro de 2022. Foi no mesmo dia 18 de Dezembro de 1943 que nasceu o saxofonista Bobby Keys, um de seus maiores amigos e membro fixo da banda de apoio dos Rolling Stones até a morte aos 70 anos em 2014. Todo aniversário de Keith é marcado por uma afetiva homenagem ao saudoso parceiro musical. Esse ano, o tributo veio com um vídeo curioso: versões jovens de Richards e Keys jogam uma grande e pesada TV pela janela de um quarto de hotel - e se divertem com o estrondo como duas crianças. Esse registro é muito mais do que um filme caseiro feito entre turnês. É o mais famoso recorte de um dos maiores tesouros (e segredos) que a banda ainda segura do alcance de um grande público.


O ano era 1972. The Rolling Stones tinham acabado de lançar o álbum que as décadas seguintes coroariam como sua máxima obra-prima: "Exile On Main St.", uma épica jornada pelas raízes sonoras norte-americanas gravada parcialmente num porão na França. Entre as muitas pérolas musicais e êxitos do disco, um grande destaque era a capa - uma colagem do fotógrafo suíço-americano Robert Frank, com retratos bizarros e nostálgicos de figuras dos freak shows dos anos 50. O sucesso do lançamento, em comunhão com o ótimo momento de entrosamento entre membros & equipe, resultariam na volta do grupo aos Estados Unidos. Mini-flashback: a última apresentação dos Stones no país tinha sido o catastrófico show gratuito de Altamont em 1969. Os Hells Angels, motoqueiros altamente irritáveis, foram contratados para fazer a segurança do show, mas contribuíam muito mais às brigas do que a qualquer estado de paz. Resultado: um jovem negro foi morto na frente do palco durante um dos tumultos com os Angels, na noite de Dezembro que simbolizou o trágico fim da "Geração Paz & Amor" dos anos 60. 




De volta à 1972. Vale lembrar que nesse momento da narrativa, os Stones tinham abraçado o cartaz de "A Maior Banda de Rock do Planeta". E realmente não tinha para ninguém: cada apresentação era um turbilhão sonoro e visual da qualidade mais alta (em todos os sentidos) . Para captar essa nova turnê americana em imagens, a banda marotamente confiou a câmera ao mesmo Robert Frank da tal capa. Nascido na Suíça, Frank se tornou celebrado mundialmente pela série de fotografias que virou o livro "The Americans", talvez o documento visual definitivo sobre os EUA do século XX. Também cineasta experimental e inquieto, ele encarnava o conceito de "Homem-Câmera" e realizava incontáveis documentários na estética Cinéma Vérité - câmera compacta, solta e sem filtros. E assim foi convidado para acompanhar tudo de perto. Para essa aventura visual, ele trouxe apenas Daniel Seymour, que operaria o som direto e teria consigo uma segunda câmera. Frank inclusive fez questão de lhe dar o crédito de co-diretor, que está no filme. Essa parceria acabou permitindo a aparição pontual de ambos em cena (para além dos inevitáveis reflexos dos espelhos próximos). Além da dupla, diversas câmeras compactas de 16mm foram disponibilizadas para qualquer um que quisesse pegar e gravar - como eventualmente fizeram um curioso Mick Jagger e o sempre discreto Bill Wyman. A proposta era clara: nada poderia ser perdido. Mal sabiam eles que o destino fatal do filme seria consequência direta dessa escolha. O filme de Robert Frank seria barrado pela própria banda, até judicialmente, a ponto de ser exibido em público pouquíssimas vezes. Assistir trechos ou cópias piratas do filme é uma missão hercúlea que requer empenho e garimpo. Uma vitória pessoal, inclusive - mas chegaremos noS motivoS pra tanta confusão.


A polêmica já começa no título. Poucos anos antes, quando os Stones abandonaram a Decca Records para lançar o selo próprio da banda (já no topo do mundo), o contrato exigia mais uma canção inédita a ser lançada como compacto. Jagger resolveu isso numa única tarde, cantarolando sobre um garoto de programa londrino por cima de uma simples guitarra acústica. O nome da música era "Cocksuker Blues". Era isso, pegar ou largar. A Decca obviamente largou, jamais lançaria algo tão… "tão". Robert Frank pegou. Seu novo documentário já tinha nome. E resumiria perfeitamente o pacote.




Sob produção musical de Jimmy Miller, os Stones abandonaram a sonoridade orgulhosamente britânica e excêntrica da fase do guitarrista-fundador Brian Jones, morto aos 27 anos em 1969. A verdade é que no recorte temporal entre 1970-1974, os Stones iam além do quinteto Mick Jagger (vocal & presença), Keith Richards (guitarra & essência), Charlie Watts (bateria & equilíbrio), Bill Wyman (baixo & pulso) e Mick Taylor (guitarra & base). Qualquer gravação e apresentação contava obrigatoriamente com o sax de Bobby Keys, o trompete de Jim Price e o piano de Nicky Hopkins. Então filmar "a banda" era registrar esse pacote completo. Uma turma que passou a viver intensamente a tal "vida de rockstar". O documentário "Cocksucker Blues" é o resumo absoluto do clichê "Sexo, Drogas & Rock’n’Roll". Só que autêntico, visceral, na prática. 


Como os olhos de Frank não estavam ali para piscar ou desviar, a overdose é captada em imagens claras e chocantes. Jovens completamente nuas numa orgia dentro do jato particular da banda. Maconha para todos os lados, habitual como "Bom Dia". Sexo com portas abertas e câmera rodando - algo que devia ser tão natural naquele "way of life" que nada incomodava os "envolvidos". Uma simpática e onipresente groupie explicando detalhadamente como injetar a heroína da maneira certa, o que faz em plano fechado logo em seguida. Outra groupie (eram muitas, pode-se imaginar) repleta de Satisfaction e nadica inibida pela câmera próxima em seus suspiros pós-sexo - provavelmente com Seymor, que aliás devia estar gravando a banda. Fãs "experientes" na porta dos estádios revendendo ingressos por preços absurdos ou negociando tudo que possuem por alguma forma de entrar. Uma dessas jovens, em discurso dormente e reflexivo, confessa não aceitar que tenham tirado sua bebê pelo uso excessivo de ácido, "afinal se ela nasceu, foi por causa do ácido. Não faz sentido!". Mick Jagger peladão no camarim, enquanto experimenta figurinos pro show prestes a começar. Charlie Watts tenta prestar atenção em algum noticiário na TV do hotel enquanto, no quarto do lado, Richards e Keys fazem a tal TV voar pela janela. Já bem no finalzinho, até mesmo o sempre cuidadoso porta-voz e "empresário" Jagger, quase pronto para entrar no palco, ganha o close de uma fungada em dose de reconhecível pó branco. Ah sim, e além disso tudo o título, claro. 




Agora, com tantas polêmicas e choques e "ó céus!" listados, é importante olhar para além da farra de "Cocksucker Blues", que não é só isso. Quem aceita o desafio de encontrar esse tesouro perdido é recompensado com imagens inegavelmente valiosas. É indiscutível: uma banda em seu auge. Jagger gira gira gira em seus tecidos e baldes d’água, para refrescar a platéia enquanto o palco pega fogo num espetáculo de Imagem & Som. O jovem Stevie Wonder abriu muitos desses shows dos Stones em 1972. Mick Jagger o levava pessoalmente até o piano central, para delírio da multidão. E Frank caminha ao seu lado, além de captar Wonder, de perto, emendando sua catártica "Uptight" com a introdução icônica de "Satisfaction". Os dois cantam o hit juntos, em harmonias vocais e passos dançantes. Flutuam diante do resto da banda, e até eles parecem surpresos com !aquela energia!. Ao final do número, Wonder seca o suor e as lágrimas que escorrem pelo rosto. A imagem dele voando de seu piano até Jagger no meio do palco, sem ajuda ou apoio, já valeria a sessão. Há mais. Tina Turner visita o camarim e engata num selinho afetivo no amigo Mick. Richards testa maquiagens e penteados no tímido e simpatiquíssimo Charlie. Como alguém que já assistiu muito material sobre os Stones, posso garantir que poucos captaram o casal Keith Richards & Anita Pallenberg de forma tão simbólica. Em momento discreto e precioso, estão os dois solitários no vestiário/camarim de um estádio. Richards num extremo de ressaca/badtrip, apagado no colo da amada, que fuma e tira rapidamente as cinzas que caem no cabelo de seu homem. Após um carinhoso cafuné, é ela que mergulha. E ficam os dois ali, ao fundo, mergulhados nos resquícios de drogas e fumaça. Mergulhados no outro. Até moça Bianca Jagger, então esposa de Mick, ganha surpreendente destaque, em momentos quase românticos entre os dois, brilhantemente enquadrados pelo olhar fotográfico de Frank. Por cima de todo caos e rock pesado, Frank opta por uma edição que destaca singelas melodias de piano "roubadas" de momentos íntimos com Richards no instrumento. Escolha sensorial que faz toda a diferença. 



É nessas belíssimas faíscas e momentos que reside a tragédia de "Cocksucker Blues". Após assistir o corte bruto e Cinema (pura) Verdade do cineasta, a banda viu pedras rolantes no caminho. Drogas, orgias, nudez, sexo, vandalismo - tudo em planos fechados e sem corte. Ia sujar a barra. Mais que isso, ia pulverizar a barra de vez. Ainda que tivessem convocado pessoalmente moço Robert Frank para a aventura, os Stones proibiram que o filme fosse lançado ou sequer exibido a qualquer público. A escolha comercial (e bem-sucedida) foi o filme-concerto "Ladies and Gentlemen: The Rolling Stones", um dos registros definitivos do grupo no auge. Após um acordo "amigável" (e judicial) com Frank, concordaram que "seu" filme só poderia ser exibido na estrita presença do diretor. E no máximo quatro vezes num mesmo ano. E apenas em solo norte-americano. Um acordo que surpreendentemente Frank honrou por toda vida. O que tornou consideravelmente difícil a vida dos curiosos fãs de Rolling Stones. A busca por "Cocksucker Blues" consiste num intenso garimpo de "esse vídeo tem 30 minutos de material!", "aqui tem a segunda parte, mas metade tá sem áudio", "olha, aqui tem mais um trecho, porém falta uma cena que já li sobre", e tudo retalhado numa esperada qualidade inglória, repleta de pixels e ruídos. 


Robert Frank, fotógrafo celebrado e cineasta visionário, morreu em 2019 aos 94 anos. O que traz a inevitável questão: E AGORA ?! Como assistir uma versão oficial, na íntegra, sem cortes e com decente qualidade, porém "sem a presença do diretor"? Ouso dizer que "Cocksucker Blues" é um dos melhores documentários musicais do século. Uma cartela marota avisa no início da projeção que, tirando os números musicais, tudo ali é ficção e não representa a realidade. Talvez uma tentativa de aliviar a barra (que não colou), talvez puro deboche de quem estava no meio de tudo. Fato é: se fosse uma ficção ou gravada como tal, seria obra brilhante e referência absoluta no assunto. Mais do que um retrato específico de uma turnê dos Stones, é um registro do estado de espírito delirante e visceral, do excesso que engoliu muitos artistas naquela metade do século passado. All Down The Line, como a TV que se espatifa no pátio do hotel ou a jovem nua que procura suas roupas pelo chão do jato. Nem todos sobreviveram, nem todos captaram em imagens. Por mais que elas existam (e é fantástico!), o suspense vence. O tom de grave segredo proibido acaba por apenas alimentar e reforçar o mito. Como diriam os próprios, debochadíssimos no topo do mundo: You Can’t Always Get What You Want.