terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Pedradas Pós Exílio - O Filme Proibido de Robert Frank & The Rolling Stones



Keith Richards fez 79 anos no último dia 18 de Dezembro de 2022. Foi no mesmo dia 18 de Dezembro de 1943 que nasceu o saxofonista Bobby Keys, um de seus maiores amigos e membro fixo da banda de apoio dos Rolling Stones até a morte aos 70 anos em 2014. Todo aniversário de Keith é marcado por uma afetiva homenagem ao saudoso parceiro musical. Esse ano, o tributo veio com um vídeo curioso: versões jovens de Richards e Keys jogam uma grande e pesada TV pela janela de um quarto de hotel - e se divertem com o estrondo como duas crianças. Esse registro é muito mais do que um filme caseiro feito entre turnês. É o mais famoso recorte de um dos maiores tesouros (e segredos) que a banda ainda segura do alcance de um grande público.


O ano era 1972. The Rolling Stones tinham acabado de lançar o álbum que as décadas seguintes coroariam como sua máxima obra-prima: "Exile On Main St.", uma épica jornada pelas raízes sonoras norte-americanas gravada parcialmente num porão na França. Entre as muitas pérolas musicais e êxitos do disco, um grande destaque era a capa - uma colagem do fotógrafo suíço-americano Robert Frank, com retratos bizarros e nostálgicos de figuras dos freak shows dos anos 50. O sucesso do lançamento, em comunhão com o ótimo momento de entrosamento entre membros & equipe, resultariam na volta do grupo aos Estados Unidos. Mini-flashback: a última apresentação dos Stones no país tinha sido o catastrófico show gratuito de Altamont em 1969. Os Hells Angels, motoqueiros altamente irritáveis, foram contratados para fazer a segurança do show, mas contribuíam muito mais às brigas do que a qualquer estado de paz. Resultado: um jovem negro foi morto na frente do palco durante um dos tumultos com os Angels, na noite de Dezembro que simbolizou o trágico fim da "Geração Paz & Amor" dos anos 60. 




De volta à 1972. Vale lembrar que nesse momento da narrativa, os Stones tinham abraçado o cartaz de "A Maior Banda de Rock do Planeta". E realmente não tinha para ninguém: cada apresentação era um turbilhão sonoro e visual da qualidade mais alta (em todos os sentidos) . Para captar essa nova turnê americana em imagens, a banda marotamente confiou a câmera ao mesmo Robert Frank da tal capa. Nascido na Suíça, Frank se tornou celebrado mundialmente pela série de fotografias que virou o livro "The Americans", talvez o documento visual definitivo sobre os EUA do século XX. Também cineasta experimental e inquieto, ele encarnava o conceito de "Homem-Câmera" e realizava incontáveis documentários na estética Cinéma Vérité - câmera compacta, solta e sem filtros. E assim foi convidado para acompanhar tudo de perto. Para essa aventura visual, ele trouxe apenas Daniel Seymour, que operaria o som direto e teria consigo uma segunda câmera. Frank inclusive fez questão de lhe dar o crédito de co-diretor, que está no filme. Essa parceria acabou permitindo a aparição pontual de ambos em cena (para além dos inevitáveis reflexos dos espelhos próximos). Além da dupla, diversas câmeras compactas de 16mm foram disponibilizadas para qualquer um que quisesse pegar e gravar - como eventualmente fizeram um curioso Mick Jagger e o sempre discreto Bill Wyman. A proposta era clara: nada poderia ser perdido. Mal sabiam eles que o destino fatal do filme seria consequência direta dessa escolha. O filme de Robert Frank seria barrado pela própria banda, até judicialmente, a ponto de ser exibido em público pouquíssimas vezes. Assistir trechos ou cópias piratas do filme é uma missão hercúlea que requer empenho e garimpo. Uma vitória pessoal, inclusive - mas chegaremos noS motivoS pra tanta confusão.


A polêmica já começa no título. Poucos anos antes, quando os Stones abandonaram a Decca Records para lançar o selo próprio da banda (já no topo do mundo), o contrato exigia mais uma canção inédita a ser lançada como compacto. Jagger resolveu isso numa única tarde, cantarolando sobre um garoto de programa londrino por cima de uma simples guitarra acústica. O nome da música era "Cocksuker Blues". Era isso, pegar ou largar. A Decca obviamente largou, jamais lançaria algo tão… "tão". Robert Frank pegou. Seu novo documentário já tinha nome. E resumiria perfeitamente o pacote.




Sob produção musical de Jimmy Miller, os Stones abandonaram a sonoridade orgulhosamente britânica e excêntrica da fase do guitarrista-fundador Brian Jones, morto aos 27 anos em 1969. A verdade é que no recorte temporal entre 1970-1974, os Stones iam além do quinteto Mick Jagger (vocal & presença), Keith Richards (guitarra & essência), Charlie Watts (bateria & equilíbrio), Bill Wyman (baixo & pulso) e Mick Taylor (guitarra & base). Qualquer gravação e apresentação contava obrigatoriamente com o sax de Bobby Keys, o trompete de Jim Price e o piano de Nicky Hopkins. Então filmar "a banda" era registrar esse pacote completo. Uma turma que passou a viver intensamente a tal "vida de rockstar". O documentário "Cocksucker Blues" é o resumo absoluto do clichê "Sexo, Drogas & Rock’n’Roll". Só que autêntico, visceral, na prática. 


Como os olhos de Frank não estavam ali para piscar ou desviar, a overdose é captada em imagens claras e chocantes. Jovens completamente nuas numa orgia dentro do jato particular da banda. Maconha para todos os lados, habitual como "Bom Dia". Sexo com portas abertas e câmera rodando - algo que devia ser tão natural naquele "way of life" que nada incomodava os "envolvidos". Uma simpática e onipresente groupie explicando detalhadamente como injetar a heroína da maneira certa, o que faz em plano fechado logo em seguida. Outra groupie (eram muitas, pode-se imaginar) repleta de Satisfaction e nadica inibida pela câmera próxima em seus suspiros pós-sexo - provavelmente com Seymor, que aliás devia estar gravando a banda. Fãs "experientes" na porta dos estádios revendendo ingressos por preços absurdos ou negociando tudo que possuem por alguma forma de entrar. Uma dessas jovens, em discurso dormente e reflexivo, confessa não aceitar que tenham tirado sua bebê pelo uso excessivo de ácido, "afinal se ela nasceu, foi por causa do ácido. Não faz sentido!". Mick Jagger peladão no camarim, enquanto experimenta figurinos pro show prestes a começar. Charlie Watts tenta prestar atenção em algum noticiário na TV do hotel enquanto, no quarto do lado, Richards e Keys fazem a tal TV voar pela janela. Já bem no finalzinho, até mesmo o sempre cuidadoso porta-voz e "empresário" Jagger, quase pronto para entrar no palco, ganha o close de uma fungada em dose de reconhecível pó branco. Ah sim, e além disso tudo o título, claro. 




Agora, com tantas polêmicas e choques e "ó céus!" listados, é importante olhar para além da farra de "Cocksucker Blues", que não é só isso. Quem aceita o desafio de encontrar esse tesouro perdido é recompensado com imagens inegavelmente valiosas. É indiscutível: uma banda em seu auge. Jagger gira gira gira em seus tecidos e baldes d’água, para refrescar a platéia enquanto o palco pega fogo num espetáculo de Imagem & Som. O jovem Stevie Wonder abriu muitos desses shows dos Stones em 1972. Mick Jagger o levava pessoalmente até o piano central, para delírio da multidão. E Frank caminha ao seu lado, além de captar Wonder, de perto, emendando sua catártica "Uptight" com a introdução icônica de "Satisfaction". Os dois cantam o hit juntos, em harmonias vocais e passos dançantes. Flutuam diante do resto da banda, e até eles parecem surpresos com !aquela energia!. Ao final do número, Wonder seca o suor e as lágrimas que escorrem pelo rosto. A imagem dele voando de seu piano até Jagger no meio do palco, sem ajuda ou apoio, já valeria a sessão. Há mais. Tina Turner visita o camarim e engata num selinho afetivo no amigo Mick. Richards testa maquiagens e penteados no tímido e simpatiquíssimo Charlie. Como alguém que já assistiu muito material sobre os Stones, posso garantir que poucos captaram o casal Keith Richards & Anita Pallenberg de forma tão simbólica. Em momento discreto e precioso, estão os dois solitários no vestiário/camarim de um estádio. Richards num extremo de ressaca/badtrip, apagado no colo da amada, que fuma e tira rapidamente as cinzas que caem no cabelo de seu homem. Após um carinhoso cafuné, é ela que mergulha. E ficam os dois ali, ao fundo, mergulhados nos resquícios de drogas e fumaça. Mergulhados no outro. Até moça Bianca Jagger, então esposa de Mick, ganha surpreendente destaque, em momentos quase românticos entre os dois, brilhantemente enquadrados pelo olhar fotográfico de Frank. Por cima de todo caos e rock pesado, Frank opta por uma edição que destaca singelas melodias de piano "roubadas" de momentos íntimos com Richards no instrumento. Escolha sensorial que faz toda a diferença. 



É nessas belíssimas faíscas e momentos que reside a tragédia de "Cocksucker Blues". Após assistir o corte bruto e Cinema (pura) Verdade do cineasta, a banda viu pedras rolantes no caminho. Drogas, orgias, nudez, sexo, vandalismo - tudo em planos fechados e sem corte. Ia sujar a barra. Mais que isso, ia pulverizar a barra de vez. Ainda que tivessem convocado pessoalmente moço Robert Frank para a aventura, os Stones proibiram que o filme fosse lançado ou sequer exibido a qualquer público. A escolha comercial (e bem-sucedida) foi o filme-concerto "Ladies and Gentlemen: The Rolling Stones", um dos registros definitivos do grupo no auge. Após um acordo "amigável" (e judicial) com Frank, concordaram que "seu" filme só poderia ser exibido na estrita presença do diretor. E no máximo quatro vezes num mesmo ano. E apenas em solo norte-americano. Um acordo que surpreendentemente Frank honrou por toda vida. O que tornou consideravelmente difícil a vida dos curiosos fãs de Rolling Stones. A busca por "Cocksucker Blues" consiste num intenso garimpo de "esse vídeo tem 30 minutos de material!", "aqui tem a segunda parte, mas metade tá sem áudio", "olha, aqui tem mais um trecho, porém falta uma cena que já li sobre", e tudo retalhado numa esperada qualidade inglória, repleta de pixels e ruídos. 


Robert Frank, fotógrafo celebrado e cineasta visionário, morreu em 2019 aos 94 anos. O que traz a inevitável questão: E AGORA ?! Como assistir uma versão oficial, na íntegra, sem cortes e com decente qualidade, porém "sem a presença do diretor"? Ouso dizer que "Cocksucker Blues" é um dos melhores documentários musicais do século. Uma cartela marota avisa no início da projeção que, tirando os números musicais, tudo ali é ficção e não representa a realidade. Talvez uma tentativa de aliviar a barra (que não colou), talvez puro deboche de quem estava no meio de tudo. Fato é: se fosse uma ficção ou gravada como tal, seria obra brilhante e referência absoluta no assunto. Mais do que um retrato específico de uma turnê dos Stones, é um registro do estado de espírito delirante e visceral, do excesso que engoliu muitos artistas naquela metade do século passado. All Down The Line, como a TV que se espatifa no pátio do hotel ou a jovem nua que procura suas roupas pelo chão do jato. Nem todos sobreviveram, nem todos captaram em imagens. Por mais que elas existam (e é fantástico!), o suspense vence. O tom de grave segredo proibido acaba por apenas alimentar e reforçar o mito. Como diriam os próprios, debochadíssimos no topo do mundo: You Can’t Always Get What You Want.  





sexta-feira, 24 de junho de 2022

A Fraternidade de Trintignant - Au Revoir para um velho amigo


Há uma exata semana, abri o Instagram e surgiu uma foto ótima do Jean-Louis Trintignant em "O Conformista". A legenda tinha apenas três letras, RIP. Reli umas quatro vezes enquanto sentia o chão tremer. O corte cruel de algo extraordinário numa legenda tão genérica e brutal, e eu ali procurando a devida Poesia. Imediatamente lembrei de ver aquele mesmo Trintignant de chapéu pela primeira vez, na tela "mezzo grande mezzo modesta" do cineminha do CCBB. Mostra Bertolucci em 2008, descobrindo "Il Conformista" em 35mm. Lembro perfeitamente da sessão pois ela revolucionou minhas noções de Cinema e de Arte. Logo, noções de Vida. Ver aquele homem "normal", tão minimalista, sem exageros e REAL… Mudou/moldou meu olhar sobre Atores, e trouxe a faísca do Desejo de viver na pele aquele processo de "ser outro". 

Ainda me é surpreendente lembrar que é o mesmo ator na capa do meu vinil de "Un Homme et une Femme", uma das mais belas Odes ao verbo Amar já captadas por uma câmera. Ou o mesmo jovem ingenuamente apaixonado pelo furacão Bardot em "E Deus Criou a Mulher". E o mesmo senhor em tons vermelhos na Fraternidade de Kieślowski. Atrás de frios e orgulhosamente blasés óculos escuros em "Z". Ou "De Repente, num Domingo" brincando de Hitchcock com Truffaut. Assisti "Minha Noite Com Ela" mais de uma vez, e a impressão era mesmo de passar várias noites com ele, o próprio Trintignant. Tivemos muitas conversas, sempre autênticas e afetivas, ainda que nunca tenhamos nos olhado diretamente nos olhos. Eu estava em Cannes no ano em que lançava "Happy End", e uma das poucas tristezas da experiência foi não ter conseguido cruzar com ele - consegui Huppert, Cuarón, Del Toro, Eva Green, Polanski, talvez nenhum desses o impacto do possível encontro com esse ídolo francês. 

Há um momento em "Amor" que sai de sua boca a simbólica frase: "Eu não lembro o filme, mas eu lembro os sentimentos". Eu lembro de cada filme, e de todos sentimentos envolvidos. Jean-Louis Trintignant foi Ator-Catarse em minha formação, sempre transbordando o tal Fator Humano que busco em cada personagem que escrevo, vivo e descubro. Viveu 91 anos e já era um imortal Gigante quando eu cheguei na festa. A verdade é que pouco muda aos imortais. Com sorte, ecoam mais alto os merecidos aplausos. Continuam entre nós, não há dúvida. Essa foto foi captada por mim no início de Abril, uma sessão especial de "Ma Nuit Chez Maud" em 35mm na Cinemateca do MAM. Foi pura Magia ver esse cara em película naquela telona lendária. Uma ótima conversa entre tela & cadeiras naquela firme ponte que sai do projetor. Desde que meus olhos encontraram aquela simplória injusta legenda de instagram, já tive muitos reencontros e papos com o mesmo Trintignant de sempre. A mesma Intimidade Autêntica de quem chegou perto, sem esforço. Nem com esforço se afastaria. As conversas continuam. A Fraternidade de Trintignant. 



terça-feira, 14 de junho de 2022

Cruise de Ferro - O Voo Alto e Triunfal de "Top Gun : Maverick"



Eu sinceramente não ligo muito pro "Top Gun" de 1986. Juro. 

Já assisti mais de duas vezes, sempre buscando entender onde estaria "tudo aquilo" que fez o filme virar referência cult imediata. E como alguém que não vê graça alguma no Top Gun original, escrevo aqui "bem alto": o novo "Top Gun: Maverick" é um FILMAÇO. Espetáculo em todos os sentidos. Cinemão. Arrebatador. Emoção de sobra. Tudo que os fãs podiam esperar que fosse, porém ainda além. O que aconteceu? Vamos analisar esse avião.


Para quem não assistiu o lançamento de 36 anos atrás, um resumo: o personagem do Tom Cruise, Pete "Maverick" Mitchell, era basicamente um jovem rebelde e arrogante. Aquele cara marrentinho do "é claro que eu sou incrível e faço o que quiser, tô nem aí pra ninguém". Um jeitão que inclusive acabaria moldando a personalidade do próprio Tom, como sabemos em suas ousadias sem dublês e no mesmo "eu faço o que quiser, tô nem aí". Tudo que acontecia ou dava errado ao longo do primeiro filme era simples consequência desse jeitão impulsivo, irresponsável. Ele era sim um bom piloto, porém basicamente um babaquinha. Indomável, como dizia o subtítulo brasileiro. Talvez seja esse o maior trunfo do novo, de primeira: o novo Maverick, 35 anos mais velho como o próprio astro, é um personagem que faz sentido. Faz as coisas com sentido. Um arco dramático e evolutivo fantástico, pelos ecos do que já viveu e do(s) que já perdeu. A relação com o "fantasma" de uma perda do passado, a relação conturbada com uma nova geração que o vê como algo ultrapassado, todas as punições e porradas já sofridas. Maverick, dessa vez, age com absoluta humanidade. É um ser humano que faz sentido. 

Outro ponto alto, involuntário e por isso ainda mais arrepiante, é troca afetiva com o agora veterano Iceman. Val Kilmer, astro dos anos 90 que estourou ali ao lado de Cruise, sobreviveu a um avançado câncer na garganta. A vitória, porém, o deixou sem voz e extremamente fragilizado. Detalhe cruel para um Ator. Cruise sabia que não faria sentido uma sequência sem a sua presença, e lutou por sua participação no projeto. Um reencontro mais esperado do que o novo filme em si, e que bate mais forte do que qualquer diálogo presente no original. Um tardio abraço que transborda pelos olhos de Tom Cruise, e pelos sons e suspiros que escapam na plateia. Aliás, são muitos os momentos de emoção à flor da pele. Quando paro para pensar, é como se eu até começasse a gostar mais do antigo agora - sem ele, não estaria aqui escrevendo sobre uma continuação, fantástica em quase tudo que o antigo não (me) empolgava. A própria equipe de pilotos, no original, era basicamente um grupo de modelos desfilando sem camisa num jogo de egos que lembrava a quinta série de qualquer colégio clichê. A famosa cena do vôlei na praia ainda exala vergonha alheia, gratuita como só. Agora o jogo é literalmente outro: uma quase mesma cena da nova equipe na praia tem o exato efeito oposto. Há ali a construção de um time, de personagens que passam a se importar com os outros, entre si. E, assim, passo também eu a me importar com aqueles seres na tela. Fica aqui um merecido "Valeu!!" ao diretor americano Joseph Kosinski, que tinha apenas 12 anos quando o primeiro chegou aos cinemas! Não é a primeira vez que ele lida com "material sagrado" dos anos 80: é dele a direção de "Tron - O Legado" (2010), que revisitava os personagens/universo do cult de 1982. Entre tantas continuações genéricas e franquias desgastadas, parece que Kosinski considera o fator Nostalgia por um prisma mais humanizado. 



São vários porém cuidadosos os ecos do filme de 86, nunca gratuitos. E isso conquista até "não convertidos", como eu. Todos os detalhes nostálgicos são de fato importantes para a evolução emocional do protagonista. Ainda que existam muitas menções à personagens do passado, são sempre os carismáticos novos nomes do (ótimo) elenco que movem a narrativa adiante. Um filme moderno que não se faz vítima do antigo. Sempre guiado pelo arco interno, sensorial. Tom Cruise já provou o ator dramático que consegue ser quando lhe interessa, mas sua maturidade  em cena surpreende de forma diferente. Há um detalhe simbólico no tabuleiro: moço Tom, em sua eterna visão jovial correndo de um lado pro outro, raras vezes viveu um Pai em seu currículo. Tirando a parceria com Spielberg no "Guerra dos Mundos" de 2005, seus Maverick e Ethan Hunt da franquia "Missão: Impossível" talvez sejam hoje os únicos "grandes heróis do mainstream" que ainda não assumiram a paternidade. Talvez um detalhe vital ao filme em questão. A trama principal lida diretamente com o choque entre Maverick e Rooster, filho de seu saudoso melhor amigo. Ainda ocorrem encontros fortíssimos e simbólicos com Amelia, filha adolescente do antigo amor vivido por Jennifer Connelly. De certa forma, as interações com esses dois jovens guiam a evolução interna de Maverick ao longo do filme. Miles Teller e Lyliana Wray driblam clichês e entregam faíscas sutis que mudam a atitude // postura do protagonista ao longo do roteiro. Emociona, humaniza. Escrevo sobre um grande blockbuster de altíssimo orçamento onde o Fator Humano pulsa e PREVALECE. 


Então é mais ou menos assim: o primeiro, de 1986, é diversão pra sessão da tarde, quase personagens de um joguinho de fliperama. A continuação podia ser uma genérica "nova ficha", apenas. Não é o caso. "Top Gun : Maverick" é sobre Fator Humano, sobre sobreviver e sentir o peso/pressão/aventura de estar vivo. Dá vontade de chegar aos 60 e manter contato com amigos queridos. E ainda ouso escrever: esse é o filme que todos os fãs de Star Wars queriam ter visto quando a Disney assumiu a saga. O desejo das gerações que cresceram acompanhando as aventuras daqueles icônicos personagens não era sentar numa sala de cinema pra ver como Han Solo, Luke e Leia iriam morrer e fazer tudo parecer "jogado pro alto". Esse é também o filme que os fãs de Blade Runner queriam quando anunciaram uma desnecessária sequência. Ninguém fazia questão de ver um Deckard desiludido e perdido entre novos personagens sem carisma algum - de quebra acabando com um dos mistérios em aberto mais legais da História do Cinema. Esse é também o filme que os fãs do Indiana Jones queriam ver em 2008, após 20 anos sem Harrison Ford com chapéu e chicote. Esse é algo que talvez nenhum Missão Impossível da recente safra tenha sequer chegado perto, após o terceiro filmaço de 2006. 



Mais polêmica à vista: as cenas de ação do original não eram lá tão empolgantes assim, cá entre nós. A batalha final do Star Wars de 1977 dava de 2 mil a zero, em decupagem visual e envolvimento entre os pilotos. Dessa vez, é uma experiência imersiva, à flor da pele. Dá pra sentir a gravidade mudar na cadeira, até porque os atores sentiam. Quase tudo realizado e captado sem o uso de efeitos especiais, com atores treinados a lidar com pressões das cabines e Cruise de fato lá dentro fazendo aqueles absurdos. Algo esperado, afinal ele é louco. Ele é o Maverick. 

A missão especial que puxa a trama pede que a equipe principal execute dois milagres, fundamentais pra tudo dar certo. Pois me parece que esse "Top Gun : Maverick" é, em si, o milagre. Presenciei uma sala de Cinema quase lotada em absoluto silêncio, inúmeras vezes ao longo da sessão. Consegui prestar atenção em pessoas vibrando nas cadeiras, rindo de nervoso, rindo com vontade, chorando de soluçar. Me vi completamente envolvido e arrepiado - eu mesmo, sempre indiferente ao original. De quebra, o filme foi lançado com pompa e luxo e tapete vermelho no Festival de Cannes (!), já rendeu mais de 700 milhões de dólares e se tornou o filme mais lucrativo da carreira de Tom Cruise. O que mais um cinemão pipoca desse porte pode desejar? É como se tivessem feito aquele show de testosterona em 1986 só para justificar e "dar razão de ser" para esse real FILMAÇO realizado 36 anos depois. É como se uma espera (não planejada) por mais de três décadas tivesse valido muito a pena. Pois vale. Vale demais. 








quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Veni, Vidi, VITTI - O Eclipse de Monica


Ontem, dia 2 de Fevereiro de 2022, li diversas manchetes que anunciavam a morte de Monica Vitti. Matérias em português, italiano, francês, inglês. Nunca pensei que leria aquela informação, na língua que fosse. Monica Vitti, nascida Maria Luisa Ceciarelli. Minha musa favorita do Cinema Mundial, desde a primeira sessão de "L'Avventura" (1960) - a mesma sessão que mudou minha forma de observar/captar a existência. Quando aqueles cabelos loiros surgiram na tela ornando a face estrondosamente hipnótica, eu já não precisava de narrativa, de Início / Meio / Fim. A Aventura de Michelangelo Antonioni durava duas horas e meia, e eu cheguei aos créditos finais convicto de que poderia assistir aquela moça italiana por cinco, seis horas, quem sabe até sete. 

Mergulhei de cabeça (e alma) nos outros títulos da atemporal Trilogia da Incomunicabilidade, "A Noite" (1961) e "O Eclipse" (1961). Vitti, sempre em cena, era turbilhão de Fascínio e Poesia. Como um apaixonado por Cinema Mudo, ouso garantir que ela poderia ter sido uma grande estrela de filmes silenciosos, pelo tanto que comunicava em pura presença e irresistível carisma. As obras assinadas por Antonioni não eram lá muito falantes, mas poucas vezes vi um olhar tão expressivo, em tantas sutis nuances. São muitos os momentos em que Vitti grita e explode sem despentear um fio do icônico cabelo ao vento. Em qualquer contexto incomunicável, seu cabelo sempre ventava. Sempre se fazia compreender sem a palavra. A risada aberta e contagiante (!como era versátil!) coloria até o mais contrastado preto e branco. Em algum documentário do meu acervo, ouvi do próprio Antonioni: "Não preciso me preocupar muito com estética. Quando Monica está diante da câmera, qualquer enquadramento é o melhor possível". Ao escutar essa frase, entendi enfim o que seria o tal Amor. 


Para a História da Arte Mundial, bastaria à Monica Vitti a participação naquelas três obras que expandiram os limites do Cinema autoral. Ou bastariam as trocas criativas com Antonioni, tão intensas que transbordariam em intenso Romance. Começou em sua voz, ao dublar Dorian Gray no ainda neo-realista "O Grito" (1957). Após a trilogia revolucionária e chuva de prêmios ao redor do planeta, abraçaram as cores no saturado "O Deserto Vermelho" (1964). Leão de Ouro em Veneza -  nada mal, pra variar. Fim do romantismo, só voltariam a pisar no mesmo set "como bons amigos" em 1980, para "O Mistério de Oberwald" (1980). Para qualquer atriz "eficiente" e restrita ao olhar de um cineasta apaixonado, até que bastaria. Monica Vitti, vastíssima e potente, foi muito além. 




Duplina Antonioni-Vitti desfeita, o diretor italiano foi se aventurar pela Inglaterra, onde gravou a obra-prima "Blow-Up" em 1966. Moça Vitti pegou outro trem no mesmo ano, pro mesmo lugar, para também experimentar o sotaque inglês. Surgiu gigantesca no orgulhosamente pop "Modesty Blaise", encarnando a icônica personagem dos quadrinhos de Peter O’Donnell. Dirigida pelo veterano Joseph Losey, e sob a imortal trilha puro jazz de Johnny Dankworth ( ouçam no Youtube, Spotify, qualquer lugar, mas ouçam! ), Vitti explodiu em charme - antecipando em uma década o seriado "As Panteras". Imagine: era a melhor Bond Girl possível, mas sem precisar de um Bond! Caso alguém ainda duvidasse de sua extrema versatilidade, era prova indiscutível do talento pra Ação e, principalmente, pro Humor. A diva, já reconhecida como uma das atrizes mais belas e talentosas de seu tempo, se consagraria definitivamente na Comédia Italiana. Sob a batuta de mestres como Mario Monicelli e Ettore Scola, ultrapassaria a bolha dos críticos e se tornaria um dos rostos mais celebrados pelo grande público. Assim foi com os sucessos "A Garota com a Pistola" (1968) e "Ciúme à Italiana" (1970). La Vitti até experimentou a loucura do espanhol Buñuel em "O Fantasma da Liberdade" (1974). Tudo funciona até hoje, muito graças ao seu irresistível e natural carisma. Poucas vezes a câmera cinematográfica se permitiu um flerte tão escanradado e apaixonado com uma Atriz. Faço questão do A maiúsculo. 

O último filme de Monica Vitti foi lançado em 1990. "Scandalo Segreto" foi escrito e dirigido pela própria, protagonista ao lado do americano Elliott Gould.  Sua estreia na direção, com primeira exibição na mostra Un Certain Regard daquele Festival de Cannes. Apesar da pompa e luxo, foi seu trabalho final, por escolha. Isso quer dizer que quando eu surgi no mundo, em 1992, La Vitti não mais fazia Cinema. Ao me apaixonar por sua figura (aberta & declaradamente), descobri que a última aparição pública tinha sido em 2002, por indiscretas fotos de paparazzis durante um passeio com o marido - o roteirista (e muito sortudo!) Roberto Russo. Desde então, ela permaneceu reclusa e afastada de qualquer contato público por duas décadas. Vítima de uma doença degenerativa que lhe tirou a memória e autonomia, confiou sua existência à cada frame eternizado por sua magnética presença. Visitar seus filmes (qualquer um e todos) é degustar o prazer dos sonhos que testemunhamos de olhos abertos. 


Procuro por alguns frames e fotografias para ilustrar esse texto. Muitos olhares e sorrisos familiares, alguns ângulos nunca vistos e sempre surpreendentes. Diferentes penteados,  exóticos figurinos, viscerais intenções dramáticas. Meu mesmo fascínio, na certeza de uma grande paixão. A aparição de La Vitti me aconteceu em 2007, numa retrospectiva especial pela morte de Antonioni naquele ano. Desde aquela primeira sessão, que mudou/moldou minha visão de mundo, é bem possível que eu (involuntariamente) busque ângulos e ecos de moça Vitti por cada esquina que visito, em cada enquadramento que sigo fazendo. Os jornais, posts e links seguem afirmando que Claudia, Vittoria, Valentina, Adelaide, La Ragazza con la Pistola, Mrs. Foucauld, La Tosca, a Modesty Blaise em pessoa não existem mais. Como pode? "Monica Vitti  morreu". Como ousam escrever que uma Obra de Arte morre ? Se acreditam mesmo nisso, sinto quase pena. O latim que me permita a convicção: Veni, Vidi, Vitti . 




sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

To Sid, With Love - Sidney Poitier (1927-2022), uma Vida a ser Lembrada.


Sidney Poitier roubou a cena de Tony Curtis no "The Defiant Ones" de 1958 e se impôs como astro em "O Sol Tornará a Brilhar", de 1961. Isso dentro de um país no auge do racismo extremo, em uma indústria armada contra qualquer figura como a dele. Não bastasse tamanha ousadia, levou o Oscar de Melhor Ator por "Lilies of the Field" - aqui simbolicamente lançado como "Uma Voz nas Sombras" . O ano era 1964. É possível que algumas gerações mais desapegadas à História do Século XX não tenham devida ideia ou proporção da Magnitude desse feito. 


Respeitadíssimo em cena e já laureado, o homem chegou a gravar na Inglaterra com toda pompa & luxo aquela que talvez seja sua mais popular pérola: "Ao Mestre, com Carinho" (1967). Inclusive o título merece ser ecoado na eterna canção "To Sir With Love" - número Um da Billboard em 1967, emocionante até hoje. Como se não bastasse tudo isso (e bastava), Sidney Poitier assumiu a direção de nove filmes, desde o faroeste "Buck and the Preacher" (1972) até o sucesso de público "Loucos de Dar Nó" (1980). Um gigante protagonista de momentos gigantescos, voltou ao palco do Oscar em 2002 - no mesmo ano em que Denzel Washington e Halle Berry ganhavam suas estatuetas douradas. Os dois brindaram e dedicaram os prêmios ao ídolo presente, com muita razão. Foi de Poitier o primeiro Oscar para um negro na categoria principal, assim como o primeiro Oscar honorário pela carreira. Foi também o primeiro astro negro a se tornar Embaixador e a receber a Medalha Presidencial da Liberdade do presidente Obama, em 2009. 


Provável que muitos dos tributos à sua persona venham acompanhados dessas fotos Oscarizadas, devidamente grandiosas. Optei por destacar esse singelo poster de "Warm December", maduríssima obra que ele mesmo viabilizou e dirigiu em 1973. Além da extrema beleza estética e de todo simbolismo de seu auge criativo, uma certeira frase que resume sua nobre existência: Something to Remember.



quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Esse Pequeno Era uma Parada - A Última Sessão de Peter Bogdanovich (1939-2022)


Eu estive com moço Bogdanovich recentemente, no final de 2021, em uma das minhas constantes "sessões da madrugada". Era um documentário-entrevista em que ele relembrava conversas & sets com o lendário John Ford, quando foi uma jovem testemunha viva da História do Cinema Americano. Décadas de imersões criativas, extras de DVDs e madrugadas insones acabaram por tornar Peter Bogdanovich esse distante amigo muito presente na minha formação cinéfila. Para além dos próprios filmes com sua assinatura, ele sempre surgia com as grandes armações oculares, postura sofisticada e calma voz de veludo - quase sempre narrando sobre algum grande cineasta ou obra da Sétima Arte, tratada por ele com devidas letras maiúsculas. Acima de tudo, um cinéfilo apaixonado. E foi sob esse prisma que ele se lançou na ousadia do "bora fazer um filme".


Quando se estuda/pesquisa sobre a chamada Nova Hollywood que contagiou a produção cinematográfica mundial nos anos 70, gritam  e jorram nomes "famosos" como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Dennis Hopper, George Lucas e outros "rebeldes" que revolucionaram a experiência da sala escura. Em sua grande maioria, cineastas de fato jovens e sedentos por novos modos de captar aquela louca realidade regada ao sexo & drogas & rock’n’roll - a frase clichê surgiu ali, na prática. Muitos viviam literalmente essa overdose, com consequências estéticas e visuais em seus trabalhos. Nesse contexto, moço Peter Bogdanovich destoava como um "jovem velho". Orgulhosamente nostálgico, ele sempre se voltou aos veteranos mestres que despertaram sua paixão. Existem muitas fotos do jovem Peter ao lado de envelhecidos titãs do Cinema. Figurões como Howard Hawks e Alfred Hitchcock, quase entretidos por sua extrema e sincera curiosidade. Reza a lenda que o próprio Ford certa vez lhe indagou: "Me diz uma coisa: você nunca vai parar de fazer perguntas?". Bogdanovich nunca parou - e sempre fez questão de nos contar as ótimas respostas. 


Quando resolveu deixar de ser "apenas um cinéfilo" e dar o passo adiante como cineasta, o fez sob o prisma dessa mesma Nostalgia. "A Última Sessão de Cinema" foi um fenômeno no lançamento em 1971. Indicações ao Oscar pra todos os lados, aliás justíssimas. Unanimidade entre crítica & público, o que é sempre difícil, sua melancólica ode ao fim de uma era ainda surpreende pela explosão de humanidade. Aos 32 anos, conduziu jovens talentos com firmeza de mestre e iluminou para o mundo o brilho de Jeff Bridges, Ellen Burstyn, Cloris Leachman (que levou o Oscar) e Cybill Shepherd (que levou seu coração). Ainda hoje, muitos entendidos afirmam que poucas vezes um diretor foi tão maduro em seu primeiro filme como Bogdanovich em seu "The Last Picture Show". Não é exagero, mesmo que seu primeiro longa de fato tenha sido o obscuro "Targets"(1968), que ninguém viu. Ok, tudo bem, o Bogdanovich de 32 dirigia mesmo com a potência de um veterano de 82. 



Ainda que "Jovem Adulto" e orgulhosamente cult, Bogdanovich era igualmente inquieto e criativo como os amigos contemporâneos. Só na década de 70, lançou sete filmes, um potencial clássico atrás do outro. Qualquer leigo que caísse no meio de "Lua de Papel" (1973) ou "At Long Last Love" (1975) podia logo deduzir duas coisas: 1) ok, esse homem é um nostálgico e 2) ok, esse homem sabe fazer Cinema! Sua outra grande pérola, porém, veio logo na sequência do auge de 1971. "What’s Up, Doc?", já de 1972, deixava bem claro pro mundo que a cantora Barbra Streisand era mesmo uma parada!!! O tipo de Comédia louca e anárquica que poderia ser uma catástrofe na mão do diretor errado. Mas Peter Bogdanovich, tão mauricinho e "sério", era o diretor certo. E carismático! Vale uma busca rápida ao trailer original do filme, onde não resta dúvida: a grande estrela é o diretor-autor e seu tom de humor! Ele rouba o show, brinca com a câmera, mostra até como a moça deve cantar no enquadramento. O climão de diversão deu numa das comédias românticas mais irresistíveis e marotas que eu já assisti e reassisti e talvez hoje reassista de novo. Um desenho animado em live action - and there’s a lot of action! Sucesso pra Barbra, sucesso pro Pete. 


Os anos 80 e 90, com tanta tecnologia e cultura pop, deixaram evidente o descompasso de Bogdanovich com seu tempo. Até nos pulsantes anos 70, ele fazia filmes que evocavam ou se passavam em outros tempos, "ecos dourados". Perdeu o timing, mas não o prestígio.  Já idolatrado como "ícone veterano do Cinema" (e de fato se portava como tal), abraçou a persona. Passou inclusive a marcar presença como Ator & "Participação Especial" em diversos filmes e séries - quase sempre vivendo figuras imponentes de analistas ou historiadores ou especialistas em qualquer assunto que fosse. E assim se tornou um rosto familiar em "Família Soprano", "How I met your mother" e até nos "Simpsons" (!). 


Moço Bogdanovich sempre aceitou os (imagine) inúmeros convites para documentários e retrospectivas sobre os gigantes do Cinema que conheceu bem de perto. Provável que uma de suas Amizades mais cultuadas e lendárias tenha sido a com o envelhecido Orson Welles, em sua fase crepuscular. Já notoriamente um gênio indiscutível, Welles passava por momentos de crise criativa e financeira quando Bogdanovich mergulhou em sua existência. Aquele jovem discípulo, atento e autêntico, foi figura fundamental para Welles levar adiante (e começar a concretizar pra valer) o quase inacabado  "The Other Side of the Wind". Projeto ambicioso nunca lançado pelo cineasta, o longa foi finalizado mais de 40 anos após as gravações (!!!), a partir dos negativos originais guardados a sete (oito, nove) chaves em cofres e coleções pelo mundo. Nesse verdadeiro tesouro (quase) perdido, o jovem Bogdanovich no auge da fama não apenas cedeu locações, carros e parte do orçamento, como tem papel de destaque como ator - é o grande nome do elenco ao lado do imponente John Huston. Certa vez ele próprio a encarnação do Futuro de Hollywood com seu primeiro filme (um tal de "Cidadão Kane"), ali estava um envelhecido Welles diante do novo futuro. As caseiras e afetivas imagens dos bastidores revelam muito da admiração (e inevitável comparação) mútua que sustentou esse fortíssimo laço entre os dois geniosos criadores. 




Assistir uma cópia final de "O Outro Lado do Vento", finalmente bancado&lançado pela Netflix  

em 2018, é um verdadeiro milagre. Em diversos aspectos. Milagre para fãs de Welles, milagre para fãs de Cinema no sentido mais amplo. Imagens épicas, atemporais e poéticas, sobreviventes do tempo - diferente do elenco/equipe, já quase todos ausentes na tardia estreia. Ao saber da morte de Peter Bogdanovich aos 82 anos, nessa primeira semana de 2022, o primeiro sentimento foi de imediato alívio. Ele conseguiu assistir "The Other  Side Of The Wind" pronto, ufa! Deu tempo. E ainda foi o consultor direto da edição, justíssimo. Se alguém podia ser a testemunha viva daquele processo, era ele. Sempre foi, por tantos filmes e cineastas que testemunhou de perto. Após esse primeiro alívio, o seguinte foi lembrar que ele continuaria disponível para conversas nostálgicas e insones, em futuras sessões da madrugada. Sempre à distância do "Play" dos inúmeros DVDs da minha coleção que contam com sua pausada voz e luxuosa presença. Ufa. A Última Sessão de Cinema nunca será a última.