sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Eu Acredito no Cinema - uma declaração de amor gratuita e involuntária




Em tempos de angústias e dores, eu acredito no Cinema
E acredito piamente, com a mesma fé e devoção do mais fiel religioso. Meus deuses respondem por diversos nomes e nacionalidades, todos com o mesmo impacto de ressignificar a existência através dos mais belos milagres visuais. E ave Antonioni, Wilder, Fellini, Kubrick, Dreyer, Lang, Oliveira, Mauro, Welles e muitos outros - alguns até ainda encarnados entre nós, embora já com lugar garantido à Eternidade. Eu acredito na poesia de Chaplin ao realizar - numa cabana com frio, fome e desilusão - a mais bela apresentação já executada com pães. Eu acredito na postura segura de Buster Keaton enquanto uma casa cai em sua cabeça, sem acertá-lo. Acredito na grandiosa cidade de Metropolis, tão impossível de ser realizada nos anos 20, e ainda assim lá tão imponente e atemporal. Acredito no olhar de Lillian Gish e em tudo que sua profundidade pode despertar. Ou nas lágrimas da Joana D'Arc de Falconetti, as mais sinceras que uma câmera já captou. Acredito em Carmen Santos e sua onipotência em cada frame. Acredito nas mil faces de Lon Chaney, Alec Guinness e Peter Sellers. Acredito em Norma Desmond e em Charles Foster Kane. Acredito que dançar na chuva até pode ser legal, desde com Gene Kelly ao lado. Acredito nas estrelas da Atlântida, dispostas a iluminar qualquer tipo de escuridão. Ou na luz das crianças que invocam Orfeu Negro ao som de Tom Jobim em algum morro do Rio de Janeiro. Desconfio da Humanidade dos indiferentes diante de Danúbio Azul no espaço. E muitas vezes imagino o imenso vazio que me sobraria sem a Magia do Cinema. Pois certamente não consigo separar Cinema da noção de Magia - um de seus "descobridores", um legítimo mágico e ilusionista movido pela irresistível indagação "e se?". E se?, a tal pergunta que move o mundo desde sempre. No meu caso, "e se não houvesse Cinema?"... Realmente não sei. Não é algo imaginável, cá entre nós. No princípio não era o verbo, e sim as sinfonias visuais que carregavam em imagens silenciosas a essência do mundo. Fosse mudo, sonoro, colorido, repleto de efeitos especiais ou 3D. Independente da trama, personagem ou direção de Arte. É no Cinema que renovo as energias e esperanças em um Futuro que vale a pena ser vivido e compartilhado. A luz do projetor rumo à tela atravessa minha vida e lhe renova o significado. É onde justifico meu mais sincero sorriso e acordo diariamente para continuar o sonho, acordado. É o que vivo, leio, pratico, escrevo, sinto, respiro. Apesar de todo caos, e acima dele, é no que acredito. Sem medo de ser julgado, e com toda intensidade possível. Posso suspirar aliviado. 
Eu acredito no Cinema.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Uma Overdose de Nostalgia - Era Uma Vez... na Hollywood de Tarantino




Imagine que você é, acima de tudo, um grande cinéfilo. Uma pessoa que realmente ama assistir filmes e prestar atenção nos pequenos detalhes, nas diferentes abordagens narrativas, até nos estilos atípicos que acabam com o rótulo de "cult". Agora imagine que você, sendo tudo isso em essência, consiga se tornar um dos cineastas mais idolatrados e reconhecidos do mundo inteiro. Essa é a vida de Quentin Jerome Tarantino. Um dos nomes que redefiniram o Cinema para o século XXI, o americano tem uma reputação invejável e ultravalorizada - levando em conta que tem em seu currículo "apenas" nove filmes. Resumindo a ideia: Tarantino, 56 anos e Palma de Ouro + Oscar no currículo, faz o que quiser. Faz do jeito que quiser. Faz no tempo que quiser. Faz com o dinheiro que quiser. 

Seu novo longa-metragem, "Once Upon a Time In Hollywood", é uma prova gritante disso. Abrindo mão de seu estilo frenético-pop com explosões de violência visual, Tarantino segue a experimentação de "Os Oito Odiados" (2015) e mais uma vez tenta algo diferente do seu habitual. Claro que os diálogos carismáticos estão lá, assim como um jeitão "cool" involuntário. Porém esse não é o foco de seu novo filme. Nostalgia é a palavra de ordem, o resumo da ópera - podemos chamar de ópera, são quase 3h de duração sem a menor pressa. Tarantino faz uso (com muita propriedade) de sua absoluta nostalgia cinéfila para fazer vários filmes dentro de um. Como está lidando com a figura de um astro decadente da clássica Hollywood, aproveita pra gravar sequências de filmes de guerra, ou então tensos momentos de um suspense policial, ou programas B de televisão, ou voltar aos Westerns. Após "Django Livre" (2012) e o já citado filme anterior, parece que o diretor realmente tem um fraco por faroestes - é quase o terceiro em sequência! Por trás dos figurinos de Velho Oeste, pistolas ao Sol, cavalos e muitos cowboys, "Era Uma Vez em… Hollywood" é quase um western ambientado em 1969. Ali no meio da bagunça, o autor Tarantino dá um jeito de inserir Sharon Tate, Polanski, Steve McQueen, Bruce Lee e outras figuras icônicas que marcaram sua formação como amante da Sétima Arte. É mais um tributo de fã que uma obra realmente original. Apesar de todo luxo e de tantas estrelas no elenco, talvez seja a obra mais irregular de toda filmografia do diretor. Isso porque, com tantos elementos ricos em mente, o diretor não se decide por uma linguagem ou sequer uma narrativa. 


A trama do astro decadente (DiCaprio, claramente apenas se divertindo em cena) e sua amizade com o dublê instável (Pitt, em seu melhor jeitão blasé) dá tantos saltos repentinos que em certo momento o roteiro assume um narrador desconhecido, só pra situar o público. Flashbacks acabam se tornando quase curtas-metragens dentro de uma única longa cena. Em determinados momentos, a edição usa letreiros e pausas que destoam completamente do resto da montagem. Não se trata de um tom cômico ou estilo narrativo, são apenas artifícios soltos e desconexos. Coisa de quem não deve nada a ninguém - é aquele papo, Tarantino pode fazer o que bem quiser. 

Os dramas internos e reflexões humanas dos personagens estão mais ricos a cada novo filme, porém por vezes acabam perdidos (ou baleados, ou atropelados, ou esfaqueados, ou queimados) em um grande calderão aquecido por seu próprio criador. Veteranos cultuados como Al Pacino e Bruce Dern, anunciados como papéis coadjuvantes de destaque, surgem de forma reduzida e quase simbólica. O mesmo vale para velhos conhecidos dos fãs como Michael Madsen, Kurt Russel e Zoë Bell. Talvez presentes, cá entre nós, apenas para o público lembrar que é mesmo um filme de Quentin Tarantino. E não deixa de ser: estão lá as frases prontas para futuras estampas, a trilha sonora vintage escolhida a dedo, as altas doses de podolatria e muitos xingamentos por minuto. Mas será que os fãs mais puristas vão lidar bem com essa versão mais madura e nostálgica do cineasta?

O olhar carinhoso (quem diria!) da direção faz uma curva da própria história para que nos apaixonemos pela Sharon Tate de Margot Robbie. De certa forma, ela é o ponto alto da grande bagunça, como se o filme fosse uma velada carta de amor. Porém apenas quem conhece o trágico destino da jovem atriz entenderá plenamente a nova brincadeira de Tarantino. Comparável ao "Ave, César" (2016) dos irmãos Coen em essência e abordagem (até em algumas cenas!), o novo filme de Tarantino não é mais que uma viagem nostálgica. Talvez muito longa e apaixonada - e tudo bem, paixão demais nunca é problema. Acima de um empolgante "novo filme de Quentin Tarantino", "Once Upon a Time In Hollywood" é uma assumida celebração da própria cinefilia. Tarantino pode - e faz! - o que bem quiser. Os fãs que entrem na onda.