sexta-feira, 24 de junho de 2022

A Fraternidade de Trintignant - Au Revoir para um velho amigo


Há uma exata semana, abri o Instagram e surgiu uma foto ótima do Jean-Louis Trintignant em "O Conformista". A legenda tinha apenas três letras, RIP. Reli umas quatro vezes enquanto sentia o chão tremer. O corte cruel de algo extraordinário numa legenda tão genérica e brutal, e eu ali procurando a devida Poesia. Imediatamente lembrei de ver aquele mesmo Trintignant de chapéu pela primeira vez, na tela "mezzo grande mezzo modesta" do cineminha do CCBB. Mostra Bertolucci em 2008, descobrindo "Il Conformista" em 35mm. Lembro perfeitamente da sessão pois ela revolucionou minhas noções de Cinema e de Arte. Logo, noções de Vida. Ver aquele homem "normal", tão minimalista, sem exageros e REAL… Mudou/moldou meu olhar sobre Atores, e trouxe a faísca do Desejo de viver na pele aquele processo de "ser outro". 

Ainda me é surpreendente lembrar que é o mesmo ator na capa do meu vinil de "Un Homme et une Femme", uma das mais belas Odes ao verbo Amar já captadas por uma câmera. Ou o mesmo jovem ingenuamente apaixonado pelo furacão Bardot em "E Deus Criou a Mulher". E o mesmo senhor em tons vermelhos na Fraternidade de Kieślowski. Atrás de frios e orgulhosamente blasés óculos escuros em "Z". Ou "De Repente, num Domingo" brincando de Hitchcock com Truffaut. Assisti "Minha Noite Com Ela" mais de uma vez, e a impressão era mesmo de passar várias noites com ele, o próprio Trintignant. Tivemos muitas conversas, sempre autênticas e afetivas, ainda que nunca tenhamos nos olhado diretamente nos olhos. Eu estava em Cannes no ano em que lançava "Happy End", e uma das poucas tristezas da experiência foi não ter conseguido cruzar com ele - consegui Huppert, Cuarón, Del Toro, Eva Green, Polanski, talvez nenhum desses o impacto do possível encontro com esse ídolo francês. 

Há um momento em "Amor" que sai de sua boca a simbólica frase: "Eu não lembro o filme, mas eu lembro os sentimentos". Eu lembro de cada filme, e de todos sentimentos envolvidos. Jean-Louis Trintignant foi Ator-Catarse em minha formação, sempre transbordando o tal Fator Humano que busco em cada personagem que escrevo, vivo e descubro. Viveu 91 anos e já era um imortal Gigante quando eu cheguei na festa. A verdade é que pouco muda aos imortais. Com sorte, ecoam mais alto os merecidos aplausos. Continuam entre nós, não há dúvida. Essa foto foi captada por mim no início de Abril, uma sessão especial de "Ma Nuit Chez Maud" em 35mm na Cinemateca do MAM. Foi pura Magia ver esse cara em película naquela telona lendária. Uma ótima conversa entre tela & cadeiras naquela firme ponte que sai do projetor. Desde que meus olhos encontraram aquela simplória injusta legenda de instagram, já tive muitos reencontros e papos com o mesmo Trintignant de sempre. A mesma Intimidade Autêntica de quem chegou perto, sem esforço. Nem com esforço se afastaria. As conversas continuam. A Fraternidade de Trintignant.