quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O Segredo das Aranhas - A Obra Perdida de Fritz Lang


Alemanha, 1919. A recente derrota na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) deixou um clima de humilhação na Europa e na auto-confiança de suas nações. Como resultado, a insegurança passou a prevalecer. Os alemães estavam arrasados e pessimistas, e um dos meios de levantar a moral da nação foi se apoiar no seu cinema como forma de união. Desse estado de espírito nasceria o primeiro grande movimento da história da sétima arte: o Expressionismo Alemão. Os cenários assustadores, disformes e sombrios seriam vistos pela primeira vez em "O Gabinete do Doutor. Caligari"(1919). Para dirigir esse marco do cinema, a primeira pessoa cogitada foi um promissor diretor que tinha servido na guerra pelo exército austríaco e nela sofrido ferimentos graves. Seu nome: Friedrich Anton Christian Lang (1890-1976), mais conhecido e cultuado como Fritz Lang.

Lang já tinha feito vários roteiros para produções alemães e até atuado como a Morte em "HildeWarren e A Morte"(1917). Após dois filmes bem sucedidos (ambos feitos em 1919), seu nome estava no topo da lista de diretores do futuro. Um filme como "O Gabinete do Doutor Caligari" era tudo que ele podia querer, e lhe daria consagração imediata. E o que ele fez? Recusou o projeto. Pois é. Mas Lang não era estúpido, e tinha um motivo justo: cineasta autoral, sempre voltado para roteiros próprios ou em parceria com sua esposa Thea Von Harbou, já tinha um novo projeto ousado em mente. Mas antes de abandonar de vez o projeto do Doutor Caligari e entregar a direção para Robert Wiene, Lang sugeriu uma virada no enredo que transformaria toda a trama do filme. Quem já viu sabe do que estou falando. O cruel e surpreendente final criado por Lang fez toda a diferença, se tornando a primeira grande reviravolta do cinema e tornando "Caligari" um cult imediato.


Ao deixar o projeto nas mãos de Wiene, Lang poderia focar em seu pretensioso roteiro: uma série de filmes com as aventuras exóticas de um caçador de relíquias. Alguém pensou em Indiana Jones? Pois o aventureiro criado por Lang, chamado Kay Hoog, tem realmente muito a ver com o personagem mais tarde imortalizado por Harrison Ford. Até o visual é parecido, com direito a chapéu e casaco de couro - o que indica que, provavelmente, Kay Hoog foi uma inspiração para George Lucas e Steven Spielberg, mesmo que de forma inconsciente.

Muito antes do repórter aventureiro Tintin - criado pelo cartunista belga Hergé em 1929 - cruzar o mundo por locações exóticas e perigosas, Lang deu início ao conceito do corajoso herói que vai "aonde nenhum homem jamais foi", confrontando civilizações antigas e organizações criminosas. A consequência inevitável de tantas ideias foi dividir a história em várias partes. Originalmente, Lang separou a grande trama em quatro partes. Infelizmente, só conseguiu realizar as duas primeiras, intituladas "O Lago Dourado" e "O Navio de Diamantes" - qualquer semelhança com o título de algum álbum de Tintin não é mera coincidência. Muito antes da noção de franquia e sequências virar moda, Fritz Lang foi o primeiro grande cineasta a pensar que alguns filmes funcionariam melhor com continuações. Esse seu conceito seria melhor trabalhado e desenvolvido em obra-primas posteriores, como "Os Nibelungos" (1923/1924) e, principalmente, na trilogia com o personagem Dr. Mabuse (1922/1933/1960).


Lang decidiu nomear sua saga de "Die Spinnen", que em português seria "As Aranhas" - nome da organização criminosa que Kay Hoog combate em suas aventuras. Mas antes de assistir a obra, é bom lembrar que "As Aranhas" é um filme perdido. Se no original cada parte tinha cerca de 90 minutos, a versão hoje divulgada, com exibição das duas em sequência, tem 137 minutos no total. Muitos fragmentos originais dos filmes foram perdidos no tempo, e nem mesmo o acervo da família Lang sabe o paradeiro desses materiais. Isso não chega a prejudicar o filme, mas em certos momentos as ações são cortadas bruscamente, o que pode assustar alguns espectadores desavisados. Em uma determinada sequência, em que Kay Hoog é capturado pelos inimigos em uma cidade oriental subterrânea (!), aparece uma cartela explicando como se deu a captura, para que as próximas cenas não sejam prejudicadas pela falta dos fotogramas perdidos. O fato é que esses detalhes acabam deixando o filme tão intrigante quanto o mistérios que Kay Hoog tenta desvendar em cena.

Enquanto "O Lago Dourado" apresenta uma estrutura narrativa mais tradicional, que seria mais tarde imitada nas festejadas matinês dos anos 30, "O Navio de Diamantes" apresenta uma trama mais elaborada, a partir do corajoso gancho ao final da primeira parte - extremamente ousado para a época. É bem possível que a segunda parte de "As Aranhas" seja, de fato, a primeira sequência superior ao original da história do cinema! "As Aranhas" tem um pouco de tudo: ação, aventura, um espaço para o romance, suspense, cenários exóticos, jóias raras e outras relíquias, tudo levando à um clímax com muitas batalhas e com o mocinho saindo vitorioso - e ainda, no pequeno trecho passado na Índia durante a visita ao "maior vidente do mundo", o filme beira o macabro, com Lang mostrando saber explorar bem o terror existente no desconhecido. O diretor encontra até espaço para ser inovador colocando uma mulher, Lio Sha, como a líder da grande organização de criminosos, em tempos em que as mulheres eram quase sempre apenas as vítimas a serem salvas pelo herói.


Ao analisar a obra como um todo, muitos podem pensar que Fritz Lang fez mal em deixar de lado um filme revolucionário como "O Gabinete do Dr. Caligari" para dirigir uma mera aventura descompromissada. Mas Lang era o tipo de diretor que inovava aos poucos, e aí repousa seu gênio. "As Aranhas" é referência para qualquer produção de ação/aventura feita posteriormente, com todos os elementos de um gênero ainda inexistente. Em "Os Nibelungos", Lang mostraria como levar grandes épicos medievais para o cinema, MUITO antes de "O Senhor dos Anéis" roubar todos os holofotes do gênero; com "Dr. Mabuse" ele faria um estudo do suspense psicológico; com "Metropolis"(1927) revolucionaria para sempre a ficção científica, tanto nos efeitos quanto no visual; e com "M - O Vampiro de Dusseldorf" (1931), ensinaria aos americanos como o som devia ser usado a favor da trama nos filmes. Quando foi para Hollywood, levou consigo a paixão pelo ousado e pelo exótico, que o acompanhou até suas últimas produções, "O Tigre de Bengala" e "O Sepulcro Indiano", ambos de 1959. Fritz Lang é um gênio que não recebe metade do reconhecimento que merecia - e "As Aranhas", um tesouro perdido muito mais valioso do que aqueles procurados por Kay Hoog, é mais uma prova disso.