sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Mudança de Hábito - Charlie Chaplin e sua Obra-Prima Esquecida, "Monsieur Verdoux"


É simplesmente impossível falar de Cinema sem citar o nome de Charles Spencer Chaplin (1889-1977). Ícone definitivo da sétima arte, o inglês deixou sua imagem eternizada como a personalidade mais famosa do século XX. Com a característica vestimenta, bigodinho e bengala, seu "vagabundo" se tornou uma das figuras mais atemporais e universais da história da humanidade. Mas Chaplin, o homem, já tentou fugir de Chaplin, o mito. E acredite: é ele na foto acima.

Depois de lutar contra o uso de som no cinema lançando as obras-primas "Luzes da Cidade" (1931) e "Tempos Modernos" (1936) como obras mudas em plena era de filmes falados, Chaplin finalmente cedeu ao som. Em "O Grande Ditador" (1940), seu primeiro filme falado, ele encarnava Adenoid Hynkel, uma óbvia sátira a Adolf Hitler. Mesmo indicado ao Oscar por sua atuação, Chaplin não tinha deixado de lado sua mais famosa criação: no longa, o barbeiro judeu sósia do ditador era na verdade uma versão falante de seu clássico vagabundo. Mesmo visual maltrapilho, mesma inocência juvenil, mesmo personagem consagrado. Só que Chaplin queria dar um basta definitivo em seu alter-ego. Para isso, precisaria inovar em uma nova obra que tivesse  outra motivação e outro clima. Era necessária uma mudança propositalmente radical.

A ideia para fazer "uma comédia de assassinatos" não veio de Chaplin. Em 1942, um jovem cineasta se interessou em adaptar para os cinemas a vida de Henri Désiré Landru, um polêmico assassino francês que ficou conhecido como "Barba Azul" por matar suas mulheres para pegar suas heranças. Esse jovem cineasta em questão se chamava Orson Welles. Após o prestígio e polêmica com "Cidadão Kane" (1941), Welles pensava em realizar esse projeto como seu segundo filme e tinha plena convicção de que só um homem poderia protagonizá-lo: Chaplin, o eterno vagabundo. Ao ouvir a proposta, Chaplin viu ali a oportunidade perfeita para abandonar de vez a sombra de sua mais famosa criação. Completamente envolvido com a premissa, convenceu Welles de que ele era a pessoa certa para dirigi-la e comprou a ideia do diretor americano. Seu nome seria citado nos créditos, mas toda trama e características seriam mudadas e adaptadas ao gosto do próprio Chaplin. E assim nasceu "Monsieur Verdoux".


"Monsieur Verdoux - Uma Comédia de Assassinatos" - percebam que o título original de Orson Welles foi mantido como uma espécie de subtítulo - estreou sete anos após o último filme de Chaplin, "O Grande Ditador". A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) tinha deixado cicatrizes fortes na humanidade e o clima da Guerra Fria estava no ar. O mundo não era mais um lugar agradável e leve de se viver. E foi nesse contexto que os fãs incondicionais de Charlie Chaplin foram apresentados à sua nova encarnação: Henri Verdoux, um homem que se casa com madames e dondocas ricas para as matar e pegar seu dinheiro. Agora seu figurino é sofisticado, com chapéu e bengala de luxo. O bigode está lá, mas agora é pontudo e grisalho como seus cabelos. A pose é de um galã de meia idade e bon-vivant. Uma figura fria e implacável, mas irresistivelmente sedutora e charmosa. Uma iniciativa ousada e extrema para abandonar de vez a figura do ingênuo vagabundo.

Nessa nova obra prevalecia o humor negro, ainda pouco compreendido ou apreciado na época. Mas vale lembrar que apesar da temática pesada, em nenhum momento do filme há violência visual. Tudo é sugerido ou indicado, o que nos coloca na irresistível posição de cúmplices do galante assassino. Suas motivações também são legitimadas pelo roteiro: Verdoux trabalhava humildemente como caixa de banco até ser demitido após 30 anos de serviço, pela Grande Depressão. Para manter as condições de sua esposa inválida e do pequeno filho - apresentados ao público em um momento de extremo lirismo e beleza -, ele viu como única solução seus golpes mortais. É impossível sentir raiva ou antipatia pelo personagem, principalmente pela forma como Chaplin conduz as cenas e a narrativa. E aqui temos um perfeito exemplar do Chaplin cineasta. Normalmente acostumado à câmera estática e enquadramentos simples, Chaplin se renova com inspirados movimentos de câmera e uma maior fluência entre os planos. Ele inclusive flerta com o suspense de Hitchcock em certos momentos - como a cena marcante da escada em que Verdoux mata uma de suas esposas durante a noite. O ritmo, movimento de câmera e enquadramento cuidadosamente calculado causam um efeito arrepiante e inesquecível, sem que em nenhum momento seja dita a palavra "assassinato" ou qualquer ação seja vista. Nada é mostrado, mas tudo é entendido. Nesse quesito, "Monsieur Verdoux' é uma aula de Cinema, por um de seus maiores gênios.


Mestre na arte das imagens, Chaplin enfim se apropria do som e o usa com extremo apuro e cuidado na construção de suas gags. Detalhes como a risada exagerada da pretendente Annabella - vivida hilariamente pela comediante Martha Raye - tornam-se extremamente importantes para o desenrolar da trama - algo que Chaplin não poderia usar no cinema mudo, mas aqui utiliza com extrema sabedoria. Há ainda o timing perfeito do canto dos barqueiros na cena em que ele tenta se livrar de Annabella em um barco, crente de que está isolado no meio do lago. Essa sequência inteira, inclusive, está entre as mais engraçadas e brilhantes já feitas em uma comédia.

Mais do que uma das maiores provas do talento de Chaplin na função de diretor, seu Monsieur Verdoux é a prova definitiva do exímio ator que ele foi. Um dos maiores atores que o cinema conheceu, para falar a verdade. Poucos conseguiam - ou ainda conseguem - expressar uma motivação ou intenção tão bem corporalmente. Chaplin o fazia com incrível facilidade. Seu corpo era poesia, ação e imagem em sua essência. E ouso dizer que nenhum outro ator conseguiria viver Monsieur Verdoux tão bem quanto ele. Nem Laurence Olivier, nem Marlon Brando. Talvez Sir Alec Guinness até tivesse o perfil ideal para o personagem, mas sua interpretação dificilmente seria tão autêntica quanto à de Sir Charlie Chaplin. Seu gestual minimamente pensado, o tom de voz oscilando entre calma e impulsividade e, principalmente, os rápidos olhares debochados trocados com a câmera - ninguém poderia encarnar Monsieur Verdoux com tamanha perfeição. Nos singulares momentos em que repensa a "profissão" e parece se redimir, o Verdoux de Chaplin resume qualquer diálogo ou monólogo em profundos olhares que perduram o filme. A cena final de "Luzes da Cidade" já tinha deixado claro ao mundo que poucos sabem se expressar tão bem com a força do olhar.


Apesar de marcar o corte definitivo com a figura do vagabundo, Chaplin era muito irônico para deixar algumas referências de lado. Quando seu personagem é perseguido por um investigador da polícia, esse se veste exatamente como seu velho icônico alter-ego. Pode conferir na foto ao fim desse artigo. É uma perfeita metáfora visual para o envelhecido Chaplin se escondendo e fugindo da figura de Carlitos. Como em todos os filmes mudos protagonizados por Carlitos, aqui Chaplin também encerra o filme solitário em sua caminhada. Mas dessa vez a caminhada não é esperançosa ou rumo à possibilidade de um futuro feliz. Verdoux segue para um destino implacável e inevitável, e Chaplin conclui o filme com um clima bem pesado e reflexivo. Os mais atentos vão notar que, apesar da situação sombria, seu personagens dá os passos finais em cena com o jeito característico de Carlitos, o vagabundo. Uma pequena e rápida referência-homenagem, antes dos letreiros "The End" tomarem o quadro.

Lançado em 1947, "Monsieur Verdoux" foi o maior fracasso comercial da carreira de Chaplin. A temática pesada e sombria, o cinismo e deboche presente em cada ato de humor negro e a ausência de qualquer sombra de arrependimento moral acabaram por afastar o público e transformar essa pérola na ovelha negra da filmografia do diretor. Muitos dizem que seu lançamento, ignorando todas as proibições e críticas feitas pelos órgãos de cinema da época, contribuiu diretamente para sua expulsão dos Estados Unidos em 1952. É curioso, mas esse filme é pouquíssimo citado em qualquer retrospectiva ou documentário sobre o cineasta - nem mesmo em sua famosa cinebiografia de 1992 ele aparece. Acontece que "Monsieur Verdoux" é extremamente inovador e genial no uso do humor ácido que mais tarde marcaria a obra do grupo Monty Python ou dos Irmãos Coen, por exemplo. Diante de todo o prestígio e adoração que cercam a obra de Chaplin, é injusto que esse filme permaneça esnobado ou subvalorizado como "apenas mais um filme" de seu currículo. "Monsieur Verdoux" é uma obra-prima única do humor negro, extremamente à frente de seu tempo. Nada mais justo que tratá-la como tal.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O Homem do Sputnik - Os 85 Anos do Nosso Carlos Manga !!


Quando os chafarizes e estátuas de um pomposo cenário ocupavam a tela grande, o cinema era tomado por aplausos e gritos de felicidade. Os letreiros anunciavam o que todos ali queriam ver: "Atlântida Apresenta". Era mais uma produção da Atlântida Cinematográfica. Entre 1941 e 1962, a Atlântida foi a mais bem-sucedida experiência com estúdio de escala industrial que o Cinema Brasileiro já teve. Suas populares chanchadas visavam ilustrar o "jeitinho brasileiro" através de filmes leves e divertidos. Após incêndios e enchentes que destruíram grande parte do acervo do estúdio, toda sua riqueza e glória acabou ficando esquecida em algum lugar do passado. Sem uma divulgação digna de seu material, a Atlântida ficou viva apenas na memória daqueles que viveram seus tempos de ouro ou tiveram acesso aos seus mágicos filmes. Uma dessas pessoas, uma verdadeira lenda viva entre nós, é o diretor que melhor soube captar o espírito da Atlântida nas obras-primas do humor que realizou.
Senhoras e senhores, com vocês: Carlos Manga!

José Carlos Aranha Manga nasceu no Rio de Janeiro de 1928. A paixão pelo cinema surgiu quando ainda era uma criança, através das aventuras do Robin Hood encarnado por Errol Flynn. Fascinado pela intensa magia do cinema, começou a carreira como bancário antes de se render à sétima arte - até então, ainda precária no Brasil. A amizade com o ator Cyll Farney, um dos mais populares e queridos galãs da Atlântida, o levou até o famoso estúdio, onde começou a trabalhar como contra-regra. O conhecimento da teoria e o instinto para a prática no cinema garantiram que ele se destacasse entre os demais. Rapidamente, passou de montador à diretor assistente, e logo era o diretor musical dos filmes da Atlântida, responsável pelos inúmeros números musicais que pontuavam os filmes. Em 1952 veio a primeira oportunidade de assumir a direção de um filme. Era preciso um nome artístico: José era muito comum e Aranha poderia assustar algumas pessoas - e assim surgia, oficialmente, o diretor Carlos Manga.


Manga era um diretor único. Desde o princípio era possível perceber a diferença de seus filmes para os feitos anteriormente no estúdio. Enquanto as produções dos respeitados diretores Watson Macedo ("Aviso aos Navegantes", 1950) e José Carlos Burle ("Carnaval Atlântida", 1952) eram quase teatro filmado, com uma câmera estática e sem maiores cuidados visuais, as sequências e obras assinadas por Manga apresentavam um maior cuidado estético, com fotografia trabalhada e movimentos de câmera ousados. A ideia era reproduzir o que era feito no cinema americano, e em nenhum momento ele escondeu isso. Em seu primeiro filme, resolveu estabelecer no Brasil a tradição de dupla de humor em "Dupla do Barulho" (1953), onde eternizou a parceria de Oscarito e Grande Otelo - maiores ícones do humor no país e uma das maiores duplas da história do cinema mundial. Ousou trazer o gênero western para nossas terras, com a genial sátira "Matar Ou Correr" (1954), e ainda apostou na superprodução de época com o também antológico "Nem Sansão Nem Dalila"(1955). Esses filmes representam o auge da Atlântida, um período em que ninguém atraía tanta gente aos cinemas como os nomes de Oscarito, Grande Otelo e Carlos Manga.

Nos dias de hoje, a comédia "Minha Mãe É Uma Peça" se tornou um sucesso arrebatador ao levar 4 milhões de pessoas aos cinemas. Claro que os tempos são outros - com DVDs e Internet para competir -, mas Manga conseguiu, apenas com "O Homem do Sputnik" (1959), atrair cerca de 15 milhões de espectadores às salas de exibição. Seus filmes eram garantia de sucesso de público. Já a crítica... Suas chanchadas eram rotuladas de "alienantes", "bobas" e até mesmo "desnecessárias". Manga costumava dizer debochadamente que "ninguém gostava dos filmes da Atlântida... Só o público". Diante das pressões e críticas duras, o diretor chegou até mesmo a sentir vergonha desses filmes que fazia em certo período. Felizmente, o preconceito foi superado e sua obra é hoje motivo de orgulho nacional e essencial para a cultura brasileira. 


Entre as estrelas do estúdio, Carlos Manga era ele próprio uma figura mítica. Com seu bigode fino, visual elegante e atitude energética, conquistou uma reputação forte dentro da indústria. Ao dirigir uma cena, costumava interpretar todas as ações e movimentos que pedia aos seus atores - esses admitiam que nem sempre conseguiam reproduzí-los à altura. Sempre tinha uma piada na ponta da língua - hábito que mantém até hoje -, mas quando se irritava... Sai de baixo. Criticado por alguns e admirados por muitos, Manga conquistava a simpatia dos profissionais da área com a mesma facilidade que atraía as mulheres. Durante uma noite, ele conta que fez uma aposta com Farney, galã consagrado, de quem conseguiria mais garotas em determinado local. Empataram - o que não é nada mal para alguém que vivia atrás das câmeras.

Manga ainda dirigiria pérolas como "Garotas e Samba" (1957) e "Esse Milhão É Meu" (1959) antes da despedida da Atlântida com "Entre Mulheres e Espiões" (1962), também o último grande papel de Oscarito nas telas. Com o encerramento das atividades do estúdio em 1962, o diretor voltaria aos holofotes com dois filmes: "O Marginal" (1974), suspense de ação protagonizado por Tarcísio Meira e "Os Trapalhões e o Rei do Futebol", um dos mais populares estrelados pelo quarteto. Como maior guardião da memória do estúdio que marcou sua carreira, ele realizou o nostálgico documentário "Assim Era a Atlântida" em 1975 - com o bem-sucedido intuito de apresentar aquele rico universo à novas gerações. Ele seguiria para uma bem-sucedida carreira na TV, onde dirigiu o amigo de longa data Chico Anysio em "Chico City" (1973), a premiada minissérie "Um Só Coração (2004) e a novela "Eterna Magia" (2007).


2013. Aos 85 anos de vida e com muitas experiências no currículo, Carlos Manga volta aos holofotes para o lançamento do livro "Quanto Mais Cinema Melhor - Uma Biografia de Carlos Manga", assinada pelo jornalista Sergio Cabral. Mais uma justa homenagem à sua brilhante carreira. Em 2011, durante o Festival do Rio, o cineasta ganhou a maior honraria lhe concedida em vida: uma estátua em tamanho natural no clássico Cinema Odeon da Cinelândia. Ela continua lá, saudando seus novos e velhos visitantes que, não raro - e infelizmente -, se perguntam quem é o moço ali eternizado.  Mal sabem estar diante de um gênio do nosso cinema.

Eu conheci Carlos Manga no dia 10 de abril de 2012. A ocasião era uma palestra especial em homenagem à Atlântida, na PUC-Rio. Aparentemente debilitado em sua cadeira de rodas, Manga logo levantou, riu, fez rir e encantou a plateia com sua animação e paixão pelo cinema. Em pouco tempo, todos estavam em sua mão. O dom de fascinar o público seguia intacto. Como um grande fã de seus filmes e da magia da Atlântida, fui até ele na esperança de trocar algumas palavras com o gênio. Simpatia em pessoa, essa foi sua resposta: "Fico extremamente emocionado em saber que meu trabalho ainda hoje inspira tantos jovens como você. Isso me mantém vivo! Cinema é a maior paixão que alguém pode ter! Quando seu filme estreiar, quero estar lá no lançamento!"
Ao depoimento emocionado, só consegui responder um tímido e sincero "Certamente estará, mestre".


Em sua vida, Carlos Manga foi amado, odiado, criticado, aclamado, aplaudido, vaiado, imitado e cultuado. Sempre romântico e bem humorado em sua vida e carreira, deixou sua marca única não só no cinema, mas também na história da publicidade brasileira. Como um dos últimos sobreviventes de uma época de ouro do cinema brasileiro, ele é um verdadeiro patrimônio histórico nacional. É o homem que merece ser lembrado não apenas por ser um ícone da Atlântida, um gênio do cinema ou uma lenda viva nacional. É o homem que merece ser celebrado por ser, acima de tudo, ele mesmo: o nosso imortal Carlos Manga.