segunda-feira, 17 de setembro de 2012

É Proibido Proibir - Documentário "Tropicália" Dá Uma Aula de História e Cultura Brasileira


Sempre tem aquele amigo cabeça-dura que implica, sem piedade, com filmes nacionais. Na verdade - e  infelizmente -, cada vez mais amigos fazem isso. Entre os altos e baixos produzidos no nosso cinema, uma coisa é certa: no quesito "Documentário Musical", não tem pra ninguém. Obras-primas como "Vinicius" (sobre Vinicius de Moraes), "Ninguém Sabe o Duro Que Dei" (sobre o grande Wilson Simonal), "A Vida Até Parece Uma Festa" (da banda Titãs), "Uma Noite em 67" (sobre os Festivais de Música da Record) e "Rock Brasilia" (Capital Inicial, Legião Urbana e outras bandas da cidade) são provas disso, além dos recentes "Raul - O Início, O Fim e o Meio" (sobre Raul Seixas) e "A Música Segundo Tom Jobim". E quando a gente pensa que não dá para adicionar mais bons exemplos a essa exemplar lista, surge "Tropicália".

O tema todo mundo já pelo menos ouviu falar, e rendia mesmo uma boa pesquisa e redescoberta. O Tropicalismo surgiu no Brasil na segunda metade da década de 60, como um movimento cultural e comportamental inspirado em vanguardas e na cultura estrangeira. Embora tenha se manifestado em diversas áreas, o destaque absoluto foi na música. "Capitaneados" pelas ideias de Caetano Veloso e Gilberto Gil, um grupo de cantores começou a experimentar novos sons e arranjos, promovendo uma verdadeira revolução musical no Brasil. Nesse time estavam Os Mutantes, Tom Zé, Gal Costa, entre outros nomes consagrados da MPB. Ou seja, gostar do trabalho desses artistas já é (mais de) meio caminho andado para aprovar o projeto.


O empolgante trailer já denunciava o maior trunfo do filme: seu ritmo. "Ritmo" é a palavra de ordem. Desde os créditos iniciais - aqueles inevitáveis nos filmes nacionais, com todos os patrocinadores na tela - a música já começa a ditar o andamento das coisas, para logo revelar Caetano e Gil como os grandes porta-vozes do movimento. A partir dali já fica claro que tudo giraria em torno deles, que são uma espécie de personagens centrais em torno dos quais tudo aconteceu. Após uma introdução épica - de arrepiar mesmo -, entramos com tudo em uma viagem  pelo Brasil de 67, 68 e 69.

Desde já, fica o aviso: "Tropicália" não é um documentário com a estrutura clássica do gênero. E não poderia mesmo ser, se quisesse representar bem o tema. É, basicamente, um filme de montagem, onde as imagens dizem tudo. Mas é um "filme de montagem" da melhor qualidade, que fique claro. O diretor Marcelo Machado mergulhou em uma intensa procura por materiais de arquivo durante dois anos, em busca do máximo de informações possíveis sobre o período, além de gravações originais dos músicos. E vale aqui exaltar a importância do essencial trabalho feito pelo pesquisador Antônio Venâncio. Sem ele o filme não seria possível, ou pelo menos teria muito menos impacto. Os próprios músicos ficaram emocionados e arrepiados ao ver imagens que permaneceram inéditas por mais de 40 anos. Algumas estão até embaçadas de tão gastas pelo tempo - mas o filme sabe tirar proveito disso.


Os mais desavisados vão estranhar a sucessão de imagens históricas ou tiradas de filmes e experimentações, que vão além da esfera musical. Aí está a proposta do filme: falar do tropicalismo adotando, para isso, a sua própria estética. Trata-se de um documentário tropicalista, que promove uma verdadeira mistura cultural. Passam por lá Chacrinha, Nara Leão, Rogério Duprat, a levada de Jorge Ben Jor, o cinema de Glauber Rocha, as poesias de Torquato Neto, a arte de Hélio Oiticica, o teatro de Zé Celso, a ditadura militar e seus presidentes, a represão, a tortura, a morte do estudante Edson Luís, e por aí vai. Em suma: "Tropicália" consegue ser mais do que um filme sobre música, é um verdadeiro relato sobre a História do país. O que se vivia, pensava e fazia na época - com imagens reais para ilustrar. Se o grande público cometer o erro de ignorar o filme nos cinemas, ele já tem um destino certo: as salas de aula de Comunicação ou Cultura Brasileira. Em relação ao período de três anos citado, acredite... Está tudo lá.

Diferente de "A Música Segundo Tom Jobim", onde a música dava sozinha o colorido especial às fotos projetadas, aqui há o depoimento dos músicos e pessoas envolvidas. Mas não no estilo clássico, com eles sentados falando para a câmera. Apenas ouvimos suas vozes por cima das imagens, fazendo os comentários e nos situando para o que é mostrado. É o suficiente para manter nosso interesse vivo ao longo dos 90 minutos de duração. Os envelhecidos ícones do período só vão aparecer bem no finalzinho da projeção. Talvez (veja bem, eu disse "talvez") fosse até melhor que não aparecessem, pois quando os vemos atualmente, conformados com os rumos que as coisas tomaram, bate uma pontinha de desânimo. Não que isso enfraqueça o intenso manifesto visual, mas fica um clima de "o sonho acabou" no ar.


Além de poder conhecer bem melhor a cultura de nosso país, esse documentário nos dá acesso a imagens tão raras quanto arrepiantes, que batem e ficam: uma linda e jovem Rita Lee cantando "Panis Et Circensis" com Arnaldo Baptista e Sergio Dias, em um surreal programa de televisão que busca ir contra os "adultos completamente quadrados e caretas" (palavras do apresentador), Gilberto Gil liberando a alma enquanto canta "Back In Bahia" após o exílio ou, ainda, um irado Caetano Veloso gritando para o público - que o aplaude e vaia na mesma intensidade - os versos de "É Proibido Proibir".

"Vocês não estão entendendo nada!", urra Caetano ao público nesse momento decisivo. Provavelmente eles realmente não estavam. E muito provavelmente nós mesmos, mais de 40 anos depois e após assistir esse documentário, ainda não consigamos entender perfeitamente o que se passava na cabeça dos responsáveis por aquele som libertador e inovador. Mas ao nos darmos conta de que é a nossa língua sendo cantada, nossa música sendo ouvida, é impossível evitar o orgulho que nos dá. "Tropicália" é História do Brasil. É identidade cultural brasileira. É pura música para os olhos. E é para assistir livre de medo e preconceito.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A Insustentável Leveza do Ser - "Intocáveis", Uma Lição de Otimismo e Bom Humor à Francesa


Você, leitor atento, pode estar se perguntando: por que esse título poético? Pois bem... "Leveza" é a palavra. É nesse estado de espírito que você fica após assistir o filme dirigido pela dupla Eric Toledano e Olivier Nakache. Existem alguns filmes que são feitos para fazer pensar, alguns para fazer rir, outros para causar medo. Mas alguns filmes são feitos, simplesmente, para ser um alívio e satisfação para o expectador - e levar, assim, um pouco de leveza à sua vida. É o caso desse "Intocáveis".

Depois de ser considerado o filme mais lucrativo na França no ano de 2011, a produção se tornou também o filme francês mais assistido no exterior da história. Para isso, inclusive, bateu a marca de "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", que desde sua estreia - em 2001 - ocupava esse posto. Como uma história tão simples consegue justificar um fenômeno de bilheteria tão forte? Vai por mim: basta ver o filme para entender. A direção, os cortes, os atores: tudo funciona às mil maravilhas. Embora a estrutura narrativa seja bem clássica, não demora muito para o ritmo ágil e bem-humorado ocupar a tela e nos envolver de jeito.


A história, baseada em fatos reais, é de uma simplicidade exemplar:  um aristocrata rico e tetraplégico contrata um jovem problemático para ser seu assistente e ajudante. A partir dessa ideia básica, acompanhamos o extrovertido Driss aprendendo a lidar com as necessidades e limitações do recluso Philippe - e vice-versa. Dois universos que vão, aos poucos, se fundindo. E é aí que entra o grande trunfo e diferencial do longa: a incrível química entre a dupla principal. Faíscas aparecem na tela em cada cena que eles dividem - no sentido metafórico e positivo, que fique claro. François Cluzet, grande ator (ainda) pouco conhecido pelo público brasileiro, dosa perfeitamente amargura, esperança e gaiatice na pele de Philippe. Por fazer um tetraplégico, toda força do personagem está nas expressões faciais e no olhar, do pescoço para cima. É o suficiente para ele. Um misto de Dustin Hoffman com Edward Norton à francesa, é delicioso ver o muro criado em torno de seu personagem ir caindo aos poucos, para revelar um doce sorriso que cativa a plateia.

O outro nome nos créditos principais merece um espaço à parte. Até então desconhecido pelo grande público, Omar Sy arrebata desde sua primeira aparição. Quando ele está em cena, não tem para ninguém. O personagem é instintivo e espontâneo, beirando a agressividade em certos momentos. Mas uma coisa é inegável: ele é o centro das cenas mais marcantes e hilárias. E quando digo hilárias, são de rolar de rir mesmo, sem exageros. Sy transpira carisma. Tanto que, das nove indicações que o filme recebeu para o César - espécie de "Oscar Francês" -, o único prêmio foi para ele, tornando-o o primeiro negro a receber o César de Melhor Ator. Não é pouco, mas é merecido. É o tipo de papel que marca muito intensamente a carreira de um ator, mas ainda é cedo para dizer como será o futuro de Omar Sy no cinema. Uma coisa é certa: carisma não falta ao moço.
O elenco secundário também é notável, com personagens que só adicionam à mistura e conseguem melhorar ainda mais a dinâmica entre a dupla principal - sem em nenhum momento ofuscá-los. Afinal, o show é deles.


A trilha sonora só ajuda. E olha que ajuda mesmo. Além de clássicos imortais de Vivaldi, Chopin e Bach, o filme ainda consegue ficar mais animado ao som da banda Earth, Wind and Fire. A abertura com "September" e a dança de Driss ao som de "Boggie Wonderland" são simplesmente impagáveis. Mas o ponto alto é o momento em que os personagens vão satisfazer um dos desejos excêntricos de Philippe e andar de parapente. No instante em que a voz única de Nina Simone começa a entoar os versos de "Feeling Good", pronto. Basta isso para flutuarmos junto com eles. Está aí um bom resumo da obra: o filme é um convite para deixar a vida de lado por alguns minutos, se sentir bem e flutuar com um sorriso no rosto. Tudo com sotaque francês.

Em tempos de filmes difíceis, complexos e pesados, é um deleite poder se deixar levar durante 112 minutos por um filme que, embora abrisse muitas margens para o drama envolvento o acidente de Philippe, não desperta no expectador nada além de um sincero sorriso de satisfação. E os americanos, que não são bobos, já abriram os olhos e encomendaram um remake a ser estrelado pelo Oscarizado Colin Firth como o rico aristocrata. Mais difícil do que encontrar alguém para encarnar o papel que foi de Omar  Sy será conseguir alcançar a simplicidade e beleza desse filme. 


Após ler tudo isso, leitor pode estar pensando que estou numa forte campanha a favor do filme. Sinceramente, acho muito difícil falar mal ou ver defeitos em um filme que faz tão bem à alma. Mas "Intocáveis" não floreia a vida real só para ter uma mensagem bonitinha no final. É um filme sincero, que mostra as coisas como elas são. Busca mostrar que há várias maneiras de encarar os acontecimentos da vida, mas a melhor delas é o otimismo. E prova que não há nada melhor do que um sorriso espontâneo para equilibrar a tensão de qualquer momento. Para os que vão assistir o filme, esse sorriso é mais do que uma moral ou lição: é uma garantia.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O Acrobata e o Poeta - A Verdadeira História de Uma das Maiores "Rivalidades" do Cinema

São muitas as polêmicas discussões entre os cinéfilos de plantão: Seria "Cidadão Kane" o maior filme de todos os tempos? "O Poderoso Chefão - Parte II" é melhor que o primeiro? Quem seria o verdadeiro "pai do cinema", os irmãos Lumière ou George Méliès? E por aí vai. Mas entre todas essas indagações, uma das mais complicadas é aquela que envolve dois gênios indiscutíveis do cinema: a que tenta comparar Buster Keaton e Charlie Chaplin.

É um assunto delicado. Charles Spencer Chaplin e Joseph Frank Keaton Jr. atuaram nos primórdios do cinema, mais ou menos no mesmo período. Durante a década de 20, principalmente, reinaram absolutos como os maiores astros da comédia. E como reis de um mesmo gênero, ficaram famosos como grandes "rivais". A rivalidade de fato nunca existiu: foi uma criação da mídia e dos estúdios para formar um grupo seleto de fãs fiéis a cada um deles. Isso não só deu certo como dura até hoje. Mas vamos aos fatos.


Embora os dois atuassem no mesmo gênero de filme, as abordagens eram bem diferentes. Chaplin foi além da comédia e se tornou um ícone, uma das figuras mais famosas do século XX. Virou até adjetivo - que crítico de cinema nunca descreveu um personagem como "chapliniano"? Por isso, todos conhecem Chaplin, fãs de cinema ou não. Por outro lado, poucas pessoas ouviram falar de Buster Keaton. Até entre alguns cinéfilos, ele é apenas mais um nome em algum parágrafo sobre a fase muda do cinema. Isso porque sua carreira, ainda que muito importante e relevante, é menos divulgada do que devia.

Buster Keaton era um exímio acrobata e artista do vaudeville. Seu humor era mais físico, composto por gags visuais muito elaboradas para a época - e executadas pelo próprio! Filmes como "Nossa Hospitalidade"(1923) e "A General"(1926) demonstram seu incrível talento técnico em ousadas cenas de corridas, fugas e quedas. Era humor visual da melhor qualidade. Os fãs mais fervorosos de Chaplin destacavam a falta de "alma" na obra de Keaton, famoso por manter uma expressão séria e impassível em todos os seus filmes. Era exatamente parte da sua graça.Chaplin, por sua vez, era um sensível poeta da imagem, usando sua incrível genialidade para dosar risos e lágrimas como poucos. Filmes como "O Garoto" (1921) e "Luzes da Cidade" (1931) equilibram de maneira quase perfeita drama e comédia.


Com o passar dos anos, muitos críticos passaram a defender a ideia de que as obras de Keaton ofereciam uma "experiência cinematográfica" mais efetiva. De fato, ele fazia uso de mais efeitos visuais e técnicos, com câmeras em movimento e truques de cena revolucionários. Enquanto isso, Chaplin produzia um cinema mais simples, adotando uma câmera basicamente estática. Não fazia enquadramentos ou movimentos muito inovadores - sabia exatamente o que fazer em cena no espaço que iria filmar. Resumindo: Keaton focava mais nos aspectos técnicos e visuais de seus filmes, enquanto Chaplin dava mais importância para a emoção e crítica social por trás da obra. Talvez por essa diferença, a obra de Chaplin tenha envelhecido melhor. Mas isso não tira o valor da genial contribuição de Keaton para a evolução do cinema. Ou, pelo menos, não devia tirar.

O diferencial determinante no "processo de esquecimento" promovido pelo grande público foi a chegada do som no cinema. Tanto Keaton quanto Chaplin eram contra o uso de som na "arte da imagem", mas o segundo tornou sua oposição mais evidente. Durante um período em que o público buscava filmes sonoros com diálogos rápidos, explosões e tiros, Chaplin arriscou e lançou "Luzes da Cidade"(1931) e "Tempos Modernos"(1936) como filme corajosamente mudos, que até criticavam os efeitos sonoros.  Quando resolveu aderir ao cinema falado, com "O Grande Ditador", o fez de forma marcante - com o famoso discurso final. Se iria enfim falar, seria algo para ser lembrado. Por outro lado, Keaton amargurou o fracasso em alguns filmes falados de baixa qualidade, impostos pelo estúdio. Diferente de Chaplin, ele não tinha mais autonomia na direção e criação de seus projetos. Seu processo de esquecimento tinha começado.


Enquanto Chaplin seguia fazendo pequenas obra-primas sonoras, Keaton amargurava no alcoolismo, fazendo pontas pequenas demais para o seu brilho. Em "Crepúsculo dos Deuses" (1950), aparecia por menos de um minuto em cena - e sem direito a nenhuma fala. Para corrigir esse erro e deixar claro que não havia rivalidade nenhuma entre eles, Chaplin o convidou para dividir a cena com ele em "Luzes da Ribalta", em 1952. Seria um mero coadjuvante, mas ainda assim com um grande destaque em cena. Enfim, dois titãs do humor juntos em ação!

Apesar de ter sido perseguido, processado e posteriormente expulso dos Estados Unidos por questões políticas, Chaplin sempre foi um ícone reconhecido. Era adorado e venerado por todos, de meros expectadores a cineastas consagrados. O reconhecimento de Keaton veio apenas na década de 60, quando foi redescoberto pelos membros da Academia Francesa de Cinema. Lá, foi alçado ao posto de gênio que poucos sabem que ele ocupa. Quando foi homenageado em Cannes, já no final da vida, respondeu amargamente aos aplausos efusivos que recebeu: "A homenagem é bonita, mas esses aplausos chegaram a mim com 30 anos de atraso."


No fim das contas, quem foi mais importante e relevante na história do cinema? Keaton ou Chaplin? Chaplin ou Keaton? É a velha questão de quem veio antes, a galinha ou o ovo. Como amante da sétima arte, não acho justo fazer campanha a favor de um ou de outro. Basta ver seus filmes para perceber como cada um adicionou muito ao cinema de maneira bem distinta. Ouso dizer que nenhum filme seria o mesmo hoje se um dos dois não tivesse existido ou seguido outra carreira. Se Chaplin tivesse virado poeta e Keaton um acrobata, o cinema seria uma arte menos completa e mágica. Assistindo obras-primas como "Em Busca do Ouro" (que Chaplin lançou em 1925) e "Sherlock Holmes Jr." (um curta genial de Keaton, de 1924) dá para entender o que estou tentando dizer. No caso, podemos até mesmo nos dar o luxo de ter dois reis no reino da comédia. Chaplin ou Keaton? Pois digo: Chaplin E Keaton.

E, como diriam as simpáticas cartelas ao final de seus filmes, "The End".