domingo, 29 de dezembro de 2013

A Liberdade É Azul - A Polêmica e a Beleza do Ousado Vencedor da Palma de Ouro 2013


 
É cada vez mais raro sair de uma sessão de cinema tendo suas expectativas para um filme não apenas correspondidas, mas superadas. Quando acontece, é uma sensação quase indescritível - atire a primeira pedra quem nunca sentiu isso. O caso mais recente foi com o vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2013: "Azul é a Cor Mais Quente", um filme francês cercado de polêmica e controvérsia desde sua primeira exibição. Baseado na história em quadrinhos "Le Bleu Est Une Coulert Chaude", de Julie Maroh, o filme acompanha o intenso caso de amor entre uma jovem estudante e uma artista plástica de cabelos azuis. O grande foco de toda a polêmica foi o uso de sequências de sexo explícito entre as duas jovens protagonistas. Esse detalhe acabou ofuscando qualquer outro aspecto do filme, para o bem e para o mal.

"La Vie D'Adèle" é o quinto filme do diretor franco-tunísio Abdellatif Kechiche. Depois de obras fortes como "O Segredo do Grão" (2007) e "Vênus Negra" (2010), o diretor chocou alguns críticos e cinéfilos pelo seu retrato bem sincero das descobertas amorosas e sexuais de uma jovem mulher em um filme de 187 minutos - que acabou levando o prêmio máximo de Cannes. O fato de Steven Spielberg - diretor conservador e comercial - ser o presidente do Júri que laureou a ousada obra apenas aumentou ainda mais o inevitável barulho da premiação. Mas vamos aos fatos.


"Azul é a Cor Mais Quente" é um filme realmente longo, mas nunca gratuito. Sua duração é maior à da grande média dos filmes no circuito, mas não há enrolação ou sequências desnecessárias em sua estrutura. Todas as cenas e situações têm sentido narrativo claro e adicionam mais elementos fundamentais à transformação das personagens. Diante disso, o tempo passa e o público mergulhado na história nem sente. Se é um filme polêmico como muitos dizem? Sim e não. Realmente, é uma obra ousada pela abordagem direta e explícita. Kechiche em nenhum momento esconde a sexualidade explosiva que brota em suas personagens. Quando há sexo entre elas, realmente há sexo intenso em cena. Claro que as imagens podem parecer fortes, incômodas ou até mesmo apelativas para parte da audiência, mas quando "sexo" é o tema retratado, esse tipo de reação parcial se mostra inevitável. O alvo de tanta polêmica são sequências bem pontuais, que somadas não completam nem 10 minutos. Mais do que qualquer coisa, são cenas sinceras que tornam as personagens e suas motivações mais legítimas, dando um sentido maior à história daquelas duas pessoas tão envolvidas e apaixonadas - e nisso se justificam. Vale lembrar: é um filme ousado, mas nunca gratuito.

A atriz Léa Sevdoux, rosto já conhecido pelo grande público por participações em filmes como "Bastardos Inglórios" (2009) e "Meia Noite em Paris" (2011), exala talento e segurança na pele de Emma, a artista plástica que ilumina cada fotograma em que aparece com seus cabelos curtos e azulados. É o grande ícone visual do filme, sem dúvida. Mas toda força e brilho que a produção francesa tem vem da incrível relevação chamada Adèle Exarchopoulos. Sim, o nome dela é complicado. E sim, é o mesmo de sua personagem. Adèle tinha apenas 19 anos quando gravou a produção, mas o filme é basicamente focado e debruçado em sua performance. E aí está seu trunfo. Através dela, acompanhamos a completa evolução de sua personagem: de uma jovem estudante indecisa e insegura até uma mulher determinada e segura de si, apesar de insatisfeita. No meio do caminho, lágrimas, prazer, gozo, raiva, dúvida, amor... A vida e seus inevitáveis detalhes. A cada nova ação ou discurso, ela nos apresenta mais nuances e camadas que ajudam a formar sua complexa personalidade. É uma personagem de extrema riqueza que só poderia funcionar e envolver o público de forma genuína se defendida por uma atriz de extrema competência e talento, disposta a mergulhar de corpo e alma no papel. Para a nossa alegria, é o que acontece. Os fãs da "Blue Jasmine" de Cate Blanchett que me perdoem, mas aqui Adèle Exarchopoulos entrega a melhor atuação feminina que vi neste ano de 2013. Sem mais.


Após receber a Palma de Ouro no Festival de Cannes com direito à muita festa e alegria, "La Vie d'Adèle" entrou em uma espécie de inferno particular que dominou a imprensa voltada à indústria do Cinema. A polêmica veio não só por parte do público perplexo com o sexo ou relacionamento lésbico em cena, mas por conflitos entre o diretor e suas musas. Léa declarou em várias ocasiões ter se sentido explorada e maltratada por Kechiche, com quem jurou nunca mais trabalhar. Não demorou muito para que Adéle também relevasse algumas dificuldades e abusos ocorridos durante as gravações. Frustrado com tantas críticas, o diretor chegou a dizer que nunca deveria ter lançado o filme, pois se tratava de uma obra suja. Sentindo-se humilhado por um público que "nunca veria o filme com coração aberto e olhar atento", ele chegou a afirmar que a vitória em Cannes foi um "breve momento de felicidade". Pelos registros e celebrações da época, era realmente difícil imaginar tensões em um time tão realizado e feliz.

A grande questão é que "Azul é a Cor Mais Quente" é maior que qualquer polêmica que o cerca. Até mesmo as já famosas cenas de sexo vão além do puro tabu. Kechiche é um cineasta que sabe transformar em arte aquilo que enquadra. E seus belíssimos enquadramentos geram imagens de incrível sensibilidade e força. Poucos diretores em atividade sabem fazer planos fechados e closes da mesma forma que Kechiche. Com eles, os orgasmos das personagens, suas bocas, cabelos e os desenhos e curvas de seus corpos se tornam incríveis quadros da natureza humana em seu estado mais puro. Mesmo sendo - sem sombra de dúvida - um dos melhores lançamentos do ano, o estilo/ ritmo adotado pelo diretor chegou a ser julgado como "irregular e confuso" por alguns críticos mais conservadores. E aqui fica bastante claro que, tematica e estruturalmente, o maior "pecado" e causa das inúmeras polêmicas geradas pelo filme seja exatamente o fato de ele ser extremamente livre em tudo que propõe e aborda. Mas não seria um de seus principais temas a liberdade em si? Pois é. Abdellatif Kechiche pode se dar o direito de sorrir mais tranquilo e realizado.