Ode ao Cinema sensorial, Aftersun parece esnobar qualquer curso de roteiro mais elaborado, que exigiria ordem e sentido claro para cada plano, ou respostas concretas para as tantas sugestões visuais. São lacunas íntimas sem gabarito definido - para que cada um possa completar com os próprios detalhes pessoais e familiares, ao gosto do freguês. "Olá, viaje com esses dois, venha sentir. Essa viagem é também sua".
Uma coleção de recortes afetivos, seja em arquivos da câmera analógica nostálgica, seja em silêncios prolongados e ensurdecedores. O adulto, uma criança indefesa diante do olhar incrivelmente maduro da pequena. Contemplamos, distantes ou próximos, quase sempre em suspensão, as pequenas ações que os conectam - já que a única coisa que eles possuem em comum é o sangue. O plano mais significativo não é em nada ingênuo: uma foto analógica, posada, em cima da mesa e se revelando aos poucos. Sem pressa. Um recorte de duas pessoas recortadas pela vida.
Aftersun não entra na minha lista de favoritos do ano. Curiosamente, é o tipo de filme que me vejo fazendo num futuro próximo. O respeito ao tempo de cada plano, os ritmos e recortes conscientes, a busca por uma intimidade velada, o chegar perto de verdade, como se não fosse tudo ali nada mais que a própria vida. Requer imensa coragem de uma jovem cineasta, como é Charlotte Wells. Nascida na Escócia há 35 anos, ela ingressou na NYU e lá realizou três curtas: Tuesday (2015), Laps (2016) e Blue Christmas (2017). "Aftersun" é seu primeiro longa, desenvolvido num laboratório de roteiros do Festival de Sundance 2020. Por hora, ela já levou um Gotham e um British Independent Film Awards pela obra. Especialistas garantem que vem mais.
Me pergunto motivos para não colocar Aftersun na lista dos meus favoritos recentes, mesmo mergulhado em tantos elogios e Poesia. É, de fato, o que me vejo buscando num longa-metragem, numa busca com a câmera. Talvez nossos filmes favoritos não sejam os filmes que precisamos fazer. É mais sobre a experiência/busca que o resultado em si. O filme, fechado e finalizado, está em quem vê, é sentimento indirigível. A faísca em si... Talvez só mesmo moça Charlotte saiba. Não impede que o vento bata no público. O mergulho de Aftersun certamente respinga, molha nossas roupas e nos faz refletir se já não estivemos bem ali. Como ecoa a voz isolada de David Bowie no pico dramático do filme: This Is Ourselves, Under Pressure.