quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Encontros, Desencontros - A Nostalgia Sensorial de "Aftersun"


Primeiros dias de 2023, lá fui eu experimentar aquele tal
"Aftersun", devidamente após o pôr-do-Sol. É um filme de interiores: dentro de quartos, dentro de piscinas, dentro da intimidade de um pai e de uma filha que não se portam tanto como tais. São dois estranhos entre si, portadores de um laço maior do que todos evidentes ruídos que marca a troca. Frases fortes escapam no susto, em aparente banalidade que revela muito de cada um. São as faíscas viáveis, diante das sedutoras imagens de uma câmera orgulhosamente recortante na poética do não dito. Em certo momento, por exemplo, há um tobogã : não vemos como se chega no seu topo e nem a queda na água, apenas pessoas passando rapidamente no trajeto. É o recorte. O deslize, sem devida causa ou consequência. É sobre o que escorrega.

Ode ao Cinema sensorial, Aftersun parece esnobar qualquer curso de roteiro mais elaborado, que exigiria ordem e sentido claro para cada plano, ou respostas concretas para as tantas sugestões visuais. São lacunas íntimas sem gabarito definido - para que cada um possa completar com os próprios detalhes pessoais e familiares, ao gosto do freguês. "Olá, viaje com esses dois, venha sentir. Essa viagem é também sua". 


Uma coleção de recortes afetivos, seja em arquivos da câmera analógica nostálgica, seja em silêncios prolongados e ensurdecedores. O adulto, uma criança indefesa diante do olhar incrivelmente maduro da pequena. Contemplamos, distantes ou próximos, quase sempre em suspensão, as pequenas ações que os conectam - já que a única coisa que eles possuem em comum é o sangue. O plano mais significativo não é em nada ingênuo: uma foto analógica, posada, em cima da mesa e se revelando aos poucos. Sem pressa. Um recorte de duas pessoas recortadas pela vida. 




Deu certo: o filme é o “queridinho indie” da temporada, rendendo elogios, prêmios, até citações de "Melhor do Ano" em publicações especializadas em Cinema. Em Essência, trata de Intimidade. Laços indizíveis, que a câmera capta com zelo e afeto. Pelo visto, algo que tem sido carente ao grande público imerso nos sons e fluxos frenéticos de muitas abas abertas. Quanto tempo ainda pode durar um plano longo, sem medo e sem pressa?

Aftersun não entra na minha lista de favoritos do ano. Curiosamente, é o tipo de filme que me vejo fazendo num futuro próximo. O respeito ao tempo de cada plano, os ritmos e recortes conscientes, a busca por uma intimidade velada, o chegar perto de verdade, como se não fosse tudo ali nada mais que a própria vida. Requer imensa coragem de uma jovem cineasta, como é Charlotte Wells. Nascida na Escócia há 35 anos, ela ingressou na NYU e lá realizou três curtas: Tuesday (2015), Laps (2016) e Blue Christmas (2017). "Aftersun" é seu primeiro longa, desenvolvido num laboratório de roteiros do Festival de Sundance 2020. Por hora, ela já levou um Gotham e um British Independent Film Awards pela obra. Especialistas garantem que vem mais. 


Me pergunto motivos para não colocar Aftersun na lista dos meus favoritos recentes, mesmo mergulhado em tantos elogios e Poesia. É, de fato, o que me vejo buscando num longa-metragem, numa busca com a câmera. Talvez nossos filmes favoritos não sejam os filmes que precisamos fazer. É mais sobre a experiência/busca que o resultado em si. O filme, fechado e finalizado, está em quem vê, é sentimento indirigível. A faísca em si... Talvez só mesmo moça Charlotte saiba. Não impede que o vento bata no público. O mergulho de Aftersun certamente respinga, molha nossas roupas e nos faz refletir se já não estivemos bem ali. Como ecoa a voz isolada de David Bowie no pico dramático do filme: This Is Ourselves, Under Pressure.