sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Cinema Paradiso - "A Invenção de Hugo Cabret", uma homenagem ao cinema por um de seus mestres


Em 2011, fiz uma matéria em homenagem aos 150 anos de George Méliès. Poucos sabem de quem se trata, mas esse é o homem que criou o cinema tal como o conhecemos, essa fascinante arte onde os sonhos não tem limites e tudo que imaginamos pode ser representado. Só que ele fez isso antes de 1900, ou seja, há mais de um século atrás. Foi basicamente o "pai do cinema", criando efeitos especiais e linhas narrativas para histórias que antes só eram possíveis em livros. Logo, uma pequena matéria celebrando sua vida e carreira era o mínimo que eu, amante da arte que ele ajudou a criar, podia fazer. Mas não era o suficiente, e esse gênio (o primeiro do cinema) merecia algo maior.

E aí entra Martin Scorsese. O mais prestigiado diretor em atividade no mundo - e ídolo desse que vos escreve - é um cara que vive DE cinema e PARA o cinema. Depois de ganhar (finalmente) o Oscar por "Os Infiltrados" (2006) e homenagear os filmes B de terror com "Ilha do Medo"(2009), ele anunciou um projeto infanto-juvenil filmado em 3D. Algo inovador para um diretor marcado por filmes violentos e pesados como "Taxi Driver" e "Os Bons Companheiros". Mas o filme em questão, "A Invenção de Hugo Cabret", é muito mais do que uma aventura para jovens. É uma grande homenagem à sétima arte, dedicada ao homem que a transformou em uma "fábrica dos sonhos". Isso mesmo, dedicada à George Méliès.


Na trama, acompanhamos o novato Asa Butterfield no papel de Hugo, um menino que vive escondido na estação de trem de uma belíssima Paris de 1930. Após a morte do pai (Jude Law em uma discreta e rápida participação), só lhe resta um misterioso robô quebrado, que ele tenta desesperadamente consertar. E nesse ambiente, ele encontra tipos agradáveis como Sr. Frick (Richard Griffiths, o eterno "tio do Harry Potter"), que sempre dá em cima da dona do restaurante (Frances de la Tour) cujo cachorrinho o reprova; a doce florista (Emily Mortimer) que não sabe ser a paixão do rude Inspetor de Polícia (Sacha Baron Cohen); um misterioso velhinho dono da livraria (Christopher Lee, ele mesmo homenageado com um papel à sua altura, aos 89 anos) e uma jovem sonhadora (a talentosa e carismática Chloe Moretz) que tem uma chave com o fecho em forma de coração, exatamente do mesmo tamanho da fechadura existente no robô de Hugo. Esse é o cenário que dá o clima simpático presente até a última cena do filme.

Mas todos esses personagens citados são apenas pontuais no desenrolar da história - exceto o Inspetor vivido por Sacha Baron Cohen, com certo destaque em uma marcante caracterização que lembra seus tempos de Borat. As atenções se recaem sobre o amargurado e solitário dono da loja de brinquedos da estação. Um pouco de cultura geral: Méliès, após ser abandonado por seu público e ter seus filmes queimados e perdidos, se isolou e passou a viver como vendedor de pequenas artimanhas no trem de Paris, onde ninguém o conhecia. Então... Isso mesmo. É o próprio George Méliès, que surge como personagem do filme, em uma interpretação magnífica de Ben Kingsley (que trabalha com Scorsese pela segunda vez, após "Ilha do Medo"). O ator encarna perfeitamente o pioneiro do cinema, obtendo uma semelhança gritante - que lembra a transformação de Merryl Streep em Margareth Tatcher -, principalmente nas cenas dos bastidores de suas produções mudas. Eles ficam tão parecidos que durante o filme várias fotos e imagens do Méliès real são mostradas sem muitos perceberem se tratar de material de arquivo. Sem dúvida, o maior papel do ator desde que ele encarnou Gandhi no filme homônimo que lhe deu o Oscar.


Esse é outro ponto positivo da produção: a grande quantidade de material de arquivo usada. Qual a melhor maneira de homenagear cineastas e o cinema em si? Usando imagens de suas próprias obras, as que entraram para a história da humanidade, de maneira inteligente. E por isso "Hugo" (no original) é um deleite visual para qualquer cinéfilo. A edição sempre eficiente de Thelma Schoonmaker, parceira de longa data de Scorsese, é mais do que suficiente para emocionar e tirar lágrimas daqueles que vivem com a esperança de ficarem eternizados em fotogramas da história do cinema - como é o caso de Scorsese e do próprio autor desta resenha.

E aí que entra a questão do 3D. Artifício considerado por muitos apenas um modo de obter maior bilheteria ou aceitação da nova geração, a profundidade e imersão proporcionada pelo 3D faz a maior diferença quando usada por um diretor que tem noção de como tirar proveito dela. Wim Wenders já deixou isso claro com "Pina", assim como Werner Herzog e seu "Caverna dos Sonhos Esquecidos". O mesmo acontece com Scorsese, que tem seus elaborados movimentos de câmera em total harmonia com os efeitos de terceira dimensão. São os diretores veteranos ensinando os novos a como usar da maneira certa sua própria tecnologia. Curioso, não? Graças a isso, cada cenário é uma aula de direção de arte e algumas cenas ficam cravadas na memória de forma inesquecível tamanha sua beleza.


E quando pensávamos que não tinha como Scorsese melhorar sua filmografia, depois de obras do calibre de "Touro Indomável" e "O Aviador", entre outras citadas anteriormente, eis que ele surge com uma nova obra-prima. E ainda, de forma marota, aproveita para fazer uma ponta no filme como um fotógrafo que registra Méliès em seu estúdio de filmagem - algo que todos que um dia se arrepiaram ao assistir "Viagem à Lua"(1902) pela primeira vez gostariam de presenciar ou fazer parte. Enfim um tributo à altura de George Méliès - feito por um outro grande fã em um filme que remete ao passado ao mesmo tempo em que aponta para o futuro.

11 indicações ao Oscar é pouco. Mais do que um prêmio, "A Invenção de Hugo Cabret" ganhará um lugar na história e no coração de todos aqueles que esperam um dia ter recursos para, através da própria arte, dar aos grandes mestres inspiradores um merecido e sincero "Obrigado". Um brinde a Méliès, a Scorsese e, principalmente, à fantástica fábrica dos sonhos que os dois ajudaram a criar e manter: o cinema.