sexta-feira, 8 de março de 2024

WimWenders & Aprendenders - A Poesia Indirigível dos "Dias Perfeitos”


O cineasta Ernst Wilhelm Wenders, o “Wim”, já nasceu com ecos de Cinema. Veio ao mundo na cidade alemã eternizada no pesadíssimo clássico lançado por Fritz Lang em 1931, "M - O Vampiro de Düsseldorf”. Já era uma das maiores vozes do Novo Cinema Alemão quando levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes com a co-produção internacional “Paris, Texas” (1984). Ainda emendou na obra-prima "Asas do Desejo" (1987). Podia parar por ali, já bastava para o panteão dos gênios da sétima arte. Não parou.


Ao longo dos mais de 20 longas seguintes que assinaria como diretor, Wenders experimentou texturas narrativas e brincou com os limites entre a ficção e o documentário. Filmou a fé do Papa Francisco (2018) e a sintonia dos músicos do Buena Vista Social Club (1999) com a mesma curiosidade. Foi assistente dedicado do então debilitado mestre Michelangelo Antonioni (1995), e ousou captar Pina Bausch em movimentos 3D (2011). Uma câmera contemplativa que não se intimida diante de diferentes cadências, técnicas, línguas ou idiomas - sempre focada no Fator Humano que unifica os personagens diante da lente. E assim, se jogou a dirigir cenas em alemão, inglês, francês, italiano, até mesmo português. O diferente é parte do atrativo. Não mais que de repente, Tokyo. 


Wenders foi convidado ao Japão para acompanhar o Tokyo Toilet Project, no qual 17 artistas internacionais seriam convidados para repensar o design dos banheiros públicos da região de Shibuya. A proposta seria um curta, ou no máximo uma série de pequenos vídeos sobre cada um desses novos cenários. O cineasta viu ali a chance de algo maior, e se uniu ao co-roteirista Takuma Takasaki para elaborar um personagem que lidasse diretamente com aquele contexto e ambiência. Era pra ser um filme. 



É ingrato e simplório perguntar qual seria a história de “Perfect Days”. Mais que uma trama, se porta como um convite. Segue o raciocínio: você sabe como funciona uma cidade grande atropelada por rotinas e movida por uma insistente pressa que tudo rege. Independe do continente ou do fuso horário. Por vezes tropeçamos nos trabalhadores do cotidiano. Como aquele quieto “moço da manutenção” que pede um minuto antes que a gente use o banheiro que ele está limpando. O filme escolhe um desses personagens silenciosos (e fundamentais) da sociedade. Faz do invisível um protagonista. Convida o espectador a acompanhar seu ritmo, seus interesses, seus calculados momentos de inofensivo lazer, a trilha sonora que reverbera em sua intimidade de um carro fechado. Um dia simples, multiplicado na rotina do “um após o outro”. E nas brechas e curvas de tudo isso, o extraordinário. 

“Perfect Days” não se esforça para agradar seus possíveis públicos. Abraça seu personagem-guia em fidelidade comovente, com rigor quase documental - por isso mesmo, tão afetivo. Por mais que seja uma ficção, não há intenção em apressá-lo nos planos longos e contemplativos, muito menos forçar ações ousadas que possam trair o prático de sua existência. Como antes disse, parece um convite: "venha conhecer a realidade desse ser humano tão real quanto tantos outros que passaram por você hoje”. Talvez você não tenha percebido. Aqui você é convidado a perceber. De perto. É simples e aí está a grandiosidade da coisa. Ao longo das 17 sucintas diárias de filmagem, o mérito da direção de Wim Wenders está mais no “não corta isso, deixe rolar” do que em qualquer possível truque de câmera ou enquadramento elaborado. A parceria com o habitual diretor de fotografia Franz Lustig está afinada nesse caráter documental, "a imagem por ela”. E como é bonito. 



“Perfect Days” poderia passar despercebido, como tantos humanos quietos numa vasta rua barulhenta, como tantos filmes cultzinhos estreados esse mês.  Existe um fator que não permite essa indiferença. Ele tem nome + sobrenome: Kōji Yakusho. Talvez reconhecido por certo público em filmes mais acessíveis como "Dança Comigo?" (1996) e “Babel” (2006), o ator é requisitado e premiado no Oriente. Apenas agora, aos 68 anos, tem a oportunidade definitiva de tornar seu rosto conhecido e aplaudido por salas de cinema em todo mundo. Seu humilde Hirayama é uma espécie de Chaplin moderno: deslocado num mundo amargo e dolorido, cisma em enxergar Poesia e leveza nos pequenos detalhes que escapam. O vento nos galhos de uma árvore, o desenho de uma sombra na parede. Não é preciso muito para que um sorriso maroto lhe escape entre um banheiro sujo ou uma overdose de rotina. Deslocado também na interação com os “tempos modernos”, capta esses resquícios com uma câmera analógica, talvez sua única real amiga. Nem precisamos ver o resultado das fotos. É de Sentir. 


Por falar em Sentir, é impossível e imprudente não apontar para a trilha sonora. Os trajetos diários do personagem, com trânsito ou sem, são sonorizados por pérolas do repertório Rock da melhor qualidade. Estamos falando de ruas de Tokyo ao som de Ottis Redding, The Kinks, Van Morrison, The Animals. Num dos momentos mais afetivos do filme, a voz rebelde de Patti Smith promove um comovente diálogo silencioso entre gerações. Nada precisa ser dito, está tudo lá. E falando em vozes, é bem possível que Yakusho, o ator protagonista, não tenha mais que 30 falas (sempre curtas) ao longo dos 125 minutos de filme. Pouquíssimos minutos de voz em mais de duas horas por ele guiadas. Não é problema: Koji Yakusho comunica em presença, grita em silêncio, transmite qualquer e todos sentimentos no vastíssimo oceano de seus profundos olhos. Gentis olhos. É sua doçura que permite um papo sobre doença terminal culminar num pique-pega juvenil entre sombras no chão. Resultado: Prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes 2023. Não é pouco. Yakusho é muito. 




Ao longo do passeio de mãos dadas entre público & tela, diversos personagens insistem em cruzar o caminho seguro, calculado, sem espaço para surpresas de Hirayama. O filme é tão cuidadoso em nos deixar intimamente confortáveis naquele universo que qualquer pequena intervenção nos incomoda. Invade os planos daquele querido “novo amigo” e atrapalha nossa vivência ao seu lado. É mérito da direção de Wenders e do autêntico que pulsa em seu muso Yakusho. Os dias passam na tela e chega a rolar a sensação de que qualquer “The End” seria um corte brusco e ingrato, seja onde/como fosse. É a própria vida… Como ousar um corte? 


É sim possível que muita gente saia da sessão de “Dias Perfeitos” com a certeza de que nada aconteceu nas últimas horas. É também certo que alguns terão dificuldade de levantar ao acender das luzes, tomados por uma overdose de emoções profundas. Wim Wenders, já um intocável na Arte do “fazer Cinema”, ainda vivendo e aprendendo aos 78 anos, descobre (e banca!!) que não se corta uma voz como a de Nina Simone. Não se corta um ator expressivo como Kōji Yakusho. Deixa a câmera captar. O combo, catártico, extrapola créditos finais e viagens de volta pra casa. Rendeu um Prêmio do Júri no Festival de Cannes. E garantiu que “Perfect Days”, com título em inglês, se tornasse o primeiro filme representante do Japão no Oscar de Filme Internacional sem a direção de um cineasta japonês. Um diretor alemão, no caso, e que gosta de cantar Lou Reed. Apontado por ele como uma espécie de "guia espiritual" daquele personagem que pode ou não entender o que suas letras entoam, Reed cantarola os versos que batizam o filme.

"Oh, it's such a perfect day … 

I’m glad I spent it with you”.

É. Nós também.




* no final das contas, um baita ótimo registro pro Tokyo Toilet Project. Rolou.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Oh! You Pretty Things - Uma Aventura Sensorial com Yorgos & Emma!



Fevereiro de 2024, e nesse exato instante muitas pessoas estão escrevendo sobre o impacto de ter assistido "Pobres Criaturas", o novo filme do cineasta grego Yorgos Lanthimos. Serão inúmeros textos de críticos profissionais, cinéfilos amadores, gente que faz Cinema, gente que estuda Cinema, gente que apenas gosta de Cinema (de vez em quando), gente que amou a experiência, gente que odiou cada segundo daquelas duas horas e vinte e dois minutos de projeção. E aqui está mais uma coleção de palavras para tentar expressar o que claramente é de Sentir . 

Para resumir em termos práticos e breves: num mundo minimamente justo, "Poor Things" seria (em unanimidade coletiva, popular e acadêmica) A maior experiência cinematográfica definitiva do ano. Pelo menos do último ano, ou dos últimos recentes. Isso para além de qualquer Oscar ou prêmio ""oficial"" que o filme deixará de ganhar - embora o Festival de Veneza tenha garantido o Leão de Ouro (prêmio máximo do evento) à obra lááá em Setembro. Voltando ao ponto: é para além disso. 

É preciso concordar que o filme é bizarro, delirante, brutal, violentíssimo, um tanto quanto sexual, grotesco, chocante, e ainda assim - por uma brilhante dosagem disso tudo -, uma das experiências audiovisuais mais catárticas e fascinantes do Cinema no Século 21. E tudo isso abraçando com vontade o Século passado: grande parte do filme evoca a estética da centenária fase muda do cinema, os ecos barrocos das pinturas e figurinos de outras eras, os traços hipnóticos de Art Nouveau, as cores explosivas de desenhos animados, os ecos gritantes da Música Minimalista, a ausência de limites do Surrealismo. O filme se porta, portanto, como uma celebração de todas as formas de Arte. E ali, no meio de toda aquela bagunça audiovisual, a essência narrativa está na "boa" e velha Condição Humana - ora ora, novamente.



Um breve histórico: o grego Georgios "Yorgos" Lanthimos (o apelido veio da pronúncia), orgulhosamente excêntrico desde a juventude em Atenas, chamou atenção das antenas cinéfilas com as cenas absurdas de "Dogtooth" (2009) e "Attenberg" (2010). Já começou a colecionar prêmios europeus. Foi bem nessa época que leu "Poor Things", obscuro livro que o escocês Alasdair Gray lançou em 1992. Ele foi até Glasgow em busca do autor e, após alguns drinques e caminhadas pela região, conquistou sua confiança. O veterano lhe deu a bênção e autorizou uma adaptação para o Cinema. Mas não seria assim tão fácil - tanto que o criador não viveu para conferir o resultado, morrendo aos 85 anos em 2019. Ainda que fascinado pelo material original, Lanthimos não queria adotar uma abordagem realista como a do livro. Sua intenção era criar um universo à parte. Filmar um estado de Sonho & Delírio. Ainda não dava. Pouco depois, ele começou a "conquistar o mundo" com seus projetos em língua inglesa. Conseguiu emplacar "The Lobster" (2015) e "The Killing of a Sacred Deer" (2017) nos principais festivais do mundo. E enfim chegou ao Oscar, com o queridinho cult "The Favourite" garantindo a surpreendente (e merecida) estatueta de Melhor Atriz a Olivia Colman. Pronto. Yorgos Lanthimos estava na posição de ousar o que bem quisesse. 


Seu último premiadíssimo filme trouxe algo além dos prêmios e "sinal verde": a atriz americana Emma Stone. Embora então com apenas 29 anos, a moça nascida no Arizona já tinha moral na indústria e um Oscar na bolsa por "La La Land" (2017). Fascinada com o trabalho do diretor no processo de "A Favorita", moça Emma quis garantir presença em suas futuras aventuras cinematográficas. Moço Yorgos também gostou da troca e logo mencionou… o tal livro. "Poor Things". Nome forte. Personagem mais forte ainda. Urgência. Tinha que acontecer. Emma Stone mais do que topou: virou uma das produtoras do futuro filme, já em processo de acontecer. E aconteceu. Com o time certo. Que bom. 


Por mais que evoque "ecos de antigamente", o filme lançado em 2023 não possui um Tempo-Espaço definido. Nem interessava ter. Até na realização, o processo misturou técnicas distintas e alcança um equilíbrio perfeito entre maquetes em miniatura, pinturas de fundo, efeitos práticos, proporções gigantescas, sutis doses de computação gráfica. Até a característica "lente olho de peixe" que o diretor insiste usar em seus filmes finalmente faz pleno e absoluto sentido. Em certos momentos parece uma experiência 3D em imersão e interação com os cenários - dá pra quase sentir o perfume. Em impacto visual, é muito mais "Metropolis" que "Avatar". E deixa evidente, gritante, que o maior efeito especial em quadro são os atores. É um tom ousadíssimo de animação lisérgica para adultos que o elenco BANCA com imenso brilho. É um deleite acompanhar Willem Dafoe num papel sob medida para sua excêntrica presença. Divertidíssimo se chocar com Mark Ruffalo numa composição que beira a canastrice em carisma contagiante. A figura sinistra e atordoante da Shakespeareana Kathryn Hunter. E para os cinéfilos cults de plantão, há ainda uma aparição luxuosa de Hanna Schygulla, a musa maior de Fassbinder, o rosto dourado de "O Casamento de Maria Braun" (1978) e "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant" (1972). Sumida das telonas há tempos, a polaca retorna exuberante e hipnótica aos 80 anos, em personagem pontual e suficiente para instigar alguns "uau, preciso saber quem é esta mulher!!" no público. 



Fiz aqui um parágrafo à parte todinho para a performance de Emily Jean Stone. Agora com 35 anos, com cerca de 32-33 quando interpretou Bella Baxter para o filme, a mulher já tem Oscar da Academia, sim, ok ok. E merecia todos os prêmios da categoria esse ano, sim, ok ok ok. Basta ter em mente que, ao compor o avanço progressivo do estado de sua personagem ao longo dos 142 minutos de filme, moça Emma muitas vezes precisou gravar cenas fora da ordem cronológica. E até o mais técnico engenheiro civil ou dedicado dentista, sem nenhuma aula de atuação na existência, pode compreender o quão complexa é a construção e entrega da atriz em cada segundo que está em cena. É corpo, é olhar, é gestual, é som, é sombra e sonho da performance que mais exigiu de seu (evidente) talento dramático. Uma entrega visceral inclusive de corpo, em desafiadoras sequências voltadas à descoberta (e delírio) do Sexo. Sempre um tema tabu, sempre a insistência na manchete. Santo Vish. Não é meu lugar de fala opinar sobre a Presença Feminina na tela do Cinema, ou "a exploração do sexo nos filmes". Porém, cá entre nós, realmente não é sobre isso. Não conversei com moça Emma nem com moço Yorgos, mas seu filme me parece uma celebração de uma mulher se descobrindo na liberdade do existir - mesmo que, para isso, lide com alguns obstáculos + julgamentos chatos & retrógrados do "existir em sociedade". E nesse quesito, o aparente visual de época rima de forma irritante com a mentalidade conservadora do 2024 em que o filme é exibido. Ainda (?!?). O que seria mais radical e libertário e bem-vindo (!) que uma personagem feminina gigantesca em plena sintonia com uma grande atriz e um grande diretor que a desejam exatamente GIGANTESCA? "Poor Things" é o maior triunfo da carreira de Emma Stone e de Yorgos Lanthimos em suas vidas dedicadas à Arte. Um ousado e corajoso salto de mãos dadas. 



Desde o primeiro minuto de exibição até os segundos derradeiros de projeção, até o visual dos créditos iniciais/finais não nos permite esquecer que estamos diante de uma experiência grandiosa. A trilha sonora original do americano Jerskin Fendrix está indicada ao Oscar e, ao que tudo indica, já ganhou o prêmio do meu coração - afinal de contas o filme já acabou e ela cisma em continuar me acompanhando. A cada foto de divulgação ou menção ao nome, suas notas oníricas retornam e me fazem lembrar do que seria o podcast de um sonho. E aí o mais banal-mínimo som ao redor se apresenta com novas possibilidades promissoras. Gotas de chuva à janela me chamam em melodia. Fendrix rima com Hendrix. Faz sentido. 


Falando em "sentido", palavra arriscada, muito ainda será escrito, refletido, deduzido sobre "Poor Things", o filme, a obra. Um mero texto não daria conta. Me parece muito difícil colocar aqui um ponto final, da mesma forma que se provou desafiador levantar da Sala 1 do Estação NET Botafogo após a sessão. Cito lááá no topo a canção "Oh! You Pretty Things", composta/gravada por David Bowie em 1971 - por rimar com o título e com o universo do filme. Não seria surpresa cruzar com um Bowie ali entre as cenas; trata-se do mesmo universo à parte que ele nos convidava a visitar com frequência, sonoramente. Em todo caso, o mesmo sentimento flutuante que ali tive, naquela sala escura, de imediato: a dormência de limites expandidos. Pobres Criaturas, nós, de volta à realidade. 








* fala sério: "Poor Things" podia ser o nome perfeito para a banda indie cult dessa duplinha aí. Sonoridade épica delirante de uma noite de sexo intensa entre Bowie & Björk com Philip Glass nos arranjos. Que venham mais Aventuras Sensoriais com Yorgos & Emma! 




quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Smile - O Doce Eterno Sorriso de Josephine Chaplin



Existe o curioso caso dos artistas que se envolvem com as filhas de seus ídolos. Alguns mais notórios, como o Rei do Pop Michael Jackson e o casamento entre realezas com Lisa Marie Presley, filha do Rei do Rock - sim, o Elvis. Outros casos mais cults, como um jovem Martin Scorsese em romance intenso com Isabella Rossellini, filha do lendário Roberto. Um quase remake no namoro entre Quentin Tarantino e Sofia Coppola, filha do chefão Francis. Apenas duas vezes minha imaginação fértil flertou com tal risco. Mais recentemente na figura de Lily Collins - que aliás puxou apenas o carisma do maroto papai Phil, e nadica de seu visual. Porém há cerca de 15 anos, essa minha curiosidade atendia pelo nome de Josephine. O sobrenome, de fato intimidador: Chaplin. Terceira criança das oito (!!) que Chaplin teve com Oona, o amor de sua vida, "Josie" era sempre descrita como a mais doce e apegada ao pai. E também muitas vezes apontada como a mais bela da trupe. As fotos ilustravam muito bem, sempre um "vish" a cada sorriso. 

Falando em sorriso, pausa pra foto. Esse é um registro raro e valioso, milagrosamente sobrevivente ao tempo. Nele há um senhor de cabelos brancos, chapéu e óculos, bem sorridente. Sim, a própria lenda. Charles Chaplin, então com 77 anos, dirigia o que seria seu último filme: "A Condessa de Hong Kong". Seu primeiro filme colorido, o primeiro longa sem sua presença no elenco e estrelado por grandes astros - no caso, Sophia Loren e Marlon Brando. Seria também um grande fracasso, mas não é esse o foco aqui. E sim a foto em questão. O homem de costas é Mr. Brando, já Oscarizado e levemente decadente. Diante dele, o tal sorriso. A jovem Josephine se preparava para sua simbólica aparição em cena, com a bênção do pai. E por mais que existisse uma Loren presente na produção, sempre imaginei a emoção de ser apresentado a esse gentil e quase tímido sorriso. Doce resumo do prazer que ela descobria sentir num set de filmagem, já acostumada aos gigantes. 



A moça nasceu 43 anos antes do meu surgimento, mas a Magia da Fotografia me permitia esquecer tal detalhe numérico-temporal. Apegadíssima ao famoso pai, Josephine ousou se permitir ser dirigida por outros nomes famosos do Cinema mundial. É inegável a força de sua presença em "Os Contos de Canterbury", sob o olhar "vai com tudo" de Pasolini. Ou sob a batuta sofisticada de Claude Chabrol em "Um Tira Amargo". Por mais papéis que pudesse ter feito, o sobrenome naturalmente seria sempre um peso. E não só: em batismo consta como Josephine Hannah - o segundo nome em tributo à avó, que Charlie tanto amou. Não era pouco. Uma verdadeira princesa de traços hipnóticos, naquele reinado da Comédia. É esquisitíssimo ler tantas manchetes anunciando sua morte aos 74 anos, a primeira entre os herdeiros diretos de Charles & Oona. Aconteceu 13 de Julho, enquanto eu ingenuamente ouvia Stones para celebrar o Dia do Rock. 


Por mais que eu não consiga projetar a imagem de um grande pátio celeste, há Beleza em imaginar seu reencontro com um Chaplin já grisalho e imediatamente pimpão ao rever sua eterna criança se aproximar. Aquele Espaço-Tempo de melódica suspensão onde não se envelhece, onde não se termina, onde cores e tons do realismo são cristalizadas no poético preto e branco da Memória. Onde as Luzes da Ribalta nunca se apagam

Doce Josephine, jovem paixão que permanece. 


quinta-feira, 8 de junho de 2023

Meu Bilhete Dourado - "Em Busca do Ouro" e a Descoberta do Cinema


Um forasteiro chega a uma pequena cidade no meio do nada. Solitário, acabou de sobreviver a atentados violentos, tempestades de neve e fome extrema numa incansável busca por um pedaço de ouro nas montanhas frias do Alasca. Ali está quente: um grande salão/bar reúne quase todos habitantes daquele pequeno povoado. Todos dançam, flertam, bebem, lotam o espaço pelo qual o personagem se expreme para adentrar. De repente, toca uma música. Todos reagem. Casais se formam e se direcionam para o centro do salão. Ele fica. Em primeiro plano, apenas observa. Todos dançam, todos bebem, todos celebram, todos vivem. Diferente dos muitos cortes ligeiros e ritmados ao longo da aventura, esse plano se demora. Contemplativo, sem pressa. O Vagabundo de Charlie Chaplin, apoiado em sua fiel bengala, observa um mundo do qual não faz parte. Lembro muito bem da primeira vez que degustei esse enquadramento. Só de escrever sobre, sinto novamente todos os arrepios pelo corpo, um brilho mais forte nos olhos. Foi bem por ali naquele instante que um moço inglês - morto 15 anos antes do meu nascimento - redefiniu o sentido da minha existência. 


O ano era 2005. Fim de semana na casa da avó. Ela me traz uma caixa bagunçada. "Achei isso aqui na arrumação, tudo coisa velha. Veja se algo te interessa, senão é lixo". Vi, e encontrei ali um VHS misterioso, sem nada escrito. Naquela mesma noite, enquanto todos dormiam e eu aproveitava a madrugada (sempre insone), coloquei o VHS para rodar. Era um filme, talvez gravado da TV. Lá estava aquele mocinho de bigode quadrado. Eu já conhecia a figura de Charlie Chaplin de algumas fotos em revistas, de um pôster vintage do "Vida de Cachorro" na parede da casa de um amigo, de um episódio especial de Chapolin em que Roberto Bolaños se vestia em homenagem ao ídolo. Porém era a primeira vez que o via em movimento. Um primeiro filme em preto e branco, certamente o primeiro mudo. "Em Busca do Ouro". Uma obra lançada em julho de 1925, que eu assistia em agosto de 2005. Estava diante de fantasma, todos eles, vivos e hipnóticos graças à Magia do Cinema - que naquela madrugada me estufou de vida. Era a versão original do filme (viria a saber depois), com 90 minutos. E não consegui dormir naquela noite, energizado por 1hora e 30 minutos de algo nunca antes sentido. Eu não fazia ideia do que era aquilo, mas de alguma forma sabia : estou aqui é pra isso. Uma das primeiras atitudes na manhã seguinte foi comunicar a ideia para meu pai e, afinal, lhe mostrar o espetáculo. Coloquei o VHS pra rodar. O filme recomeçou. Por volta dos 20 minutos, a fita rompe. Era pra ser uma sessão única. Certeira, no alvo. Até hoje digo que nunca procurei o Cinema. Ele me encontrou. O ano era 2005.




Desde então, "Em Busca do Ouro" tem lugar seminal e transformador no meu coração, na minha existência. Se comecei a mergulhar na História do Cinema através da obra completa de Charles Spencer Chaplin, "The Gold Rush" foi a faísca inicial para uma grande explosão que me ecoa até hoje, ao vivo, enquanto escrevo esse texto. Após anos sem revisitar a obra, a reencontrei recentemente em versão iluminada, reluzente, na telona do Estação Botafogo - como parte da Mostra Chaplin, em cartaz durante Maio de 2023. Um série de sessões especiais em tela grande e na maior sala do espaço (!), sob curadoria do jovem programador Gabriel Carvalho. Foi a confirmação de que cenas, cortes e movimentos específicos continuam decorados e instintivos aos meus olhos. E também a certeza de que é, sem exageros, um dos filmes definitivos / gigantescos / intocáveis de 128 anos de Magia no Cinema. 


Vale um rápido contexto: já inquestionavelmente o rosto mais conhecido do planeta em 1924, o inglês de 35 anos se desafiava a dar passos mais grandiosos a cada novo filme. Após cerca de 60 curtas (!) entre 1914-1923, a maior ousadia de Chaplin tinha sido "O Garoto", lançado em 1921 com uma metragem de 68 minutos. Equilíbrio absoluto entre Risos & Lágrimas, um sucesso estrondoso ao redor do mundo. Era a confirmação que ele precisava: podia e devia explorar mais o drama da condição humana, até em longa duração. O humor viria junto, como é natural na própria humanidade. Agora confortável como um dos fundadores da United Artists e com estúdio próprio, Chaplin resolveu ir além das locações urbanas ou rurais de suas aventuras anteriores. O processo começou através de uma chocante fotografia apresentada pela amiga estrela Mary Pickford: uma fila gigantesca de homens subindo as montanhas de neve de Klondike, durante o surto da mineração no final do século anterior. Ali estava o contexto ideal para seu épico, "o maior de todos!" - como começou a anunciar, em voz e cartazes, todo orgulhoso.




As gravações começaram na neve mesmo, na mesma Klondike ao norte do Canadá da tal fotografia. Chaplin, que já assumia roteiro, direção e produção de seus próprios filmes, usou a moral altíssima para convocar cerca de 600 figurantes (!!!) para reproduzir a imagem que o fascinou. E conseguiu. As cenas que abrem "The Gold Rush" não são arquivos documentais, como muitos acreditam. Figurantes, membros da equipe e moradores locais convocados por Chaplin para abrir caminho na implacável neve. Conseguiu o impacto épico em imagem, mas logo entendeu que realizar o filme in loco seria puramente inviável. A partir daquele prólogo arrepiante, tudo volta para o estúdio. O que trouxe desafio maior; recriar o Alasca implacável num estúdio grandioso e quente de… Los Angeles, Califórnia. 


Spoiler: funcionou. Realizar as filmagens dentro de um estúdio foi uma cara conquista que permitiu a Chaplin enquadrar algumas de suas mais belas e climáticas composições de cena. A câmera fiel de Roland Totheroh, seu fotógrafo oficial de confiança, poucas vezes captou imagens tão bonitas e ilustrativas. As cartelas de diálogos ou comentários são puro luxo narrativo - os enquadramentos e recortes comunicam TUDO, e nos guiam por uma experiência sensorial absurda, atemporal. Em toda obra de Charlie Chaplin, é seu maior espetáculo visual. Talvez até narrativo. Chaplin ousa se permitir sequências agitadas de ação, momentos de puro horror visual, outros orgulhosamente românticos. A chocante cena que ilustra a "justiça implacável do Norte" é das mais fortes já assistidas num filme silencioso. A tragédia humana domina a tela em diversos instantes. Porém o desfile de tons e gêneros são sempre ligados e pontuados pelo humor inteligente e involuntário que garante a presença de "Em Busca do Ouro" em qualquer lista das Melhores Comédias. É, provavelmente, o filme mais versátil e completo de Charlie Chaplin. Essa frase traz consigo muita responsa. 



É natural que se destaque uma das sequências mais célebres e inesquecíveis: no limite da fome, seu "Lone Prospector" cozinha dedicadamente a bota de couro, colocada à mesa como delicioso prato de comida. O grandalhão Big Jim, vivido por Mack Swain, velho parceiro de curtinhas da Keystone, intimida o pequetito protagonista e rouba "a parte nobre" do calçado. Sobram para Chaplin a sola e seus pregos, saboreados como espinhas de um peixe suculento. Ele garante também os cadarços, degustados como espaguete de qualidade. Pouco adiante, o mesmo Big Jim delirante de fome passa a ver nosso amigo Chaplin como uma galinha de proporções aumentadas e movimentos realistas. Existem muitas outras travessuras visuais e estéticas que me levam a confirmar: é dos filmes mais surrealistas jamais lançados. Tão acessível e carismático que muitos críticos e cinéfilos nem se dão conta disso. As imagens comprovam. Surrealismo puro, afinado ao riso. 



Como citamos a presença do Romance, a protagonista vivida por Georgia Hale merece destaque e um parágrafo só pra ela. Até então, a grande "musa" de Chaplin vinha sendo Edna Purviance, parceira fiel em mais de uma dezena de curtas brilhantes e alçada ao posto de protagonista no dramático (fracasso de público) "A Woman of Paris" - que o cineasta apenas dirigiu em 1923, cometendo a ousadia de não dar as caras (ou bigode)! Aos fãs seria muito natural reencontrar o rosto angelical de Purviance numa nova produção de Charlie Chaplin.   Ela estava lá em "O Garoto", afinal. Mas sua figura "pura" e muitas vezes inocente/indefesa não teria vez naquele projeto de proporções tão ousadas. Eis que surge a Georgia (de) Hale. Mulher de temperamento forte, quase arrogante, decidida a não cair em cortejos fáceis e ainda agressiva com os mais insistentes. Pior: um interesse platônico do protagonista que chega a brincar com seu emocional, longe de corresponder seu desejo e paixão. Para o público de 1925, uma personagem feminina incrivelmente chocante para uma comédia. Orgulhosamente chocante. Em quase nenhum momento atriz e persona se esforçam para conquistar o carinho de quem assiste. Ainda assim, é impossível de não se apaixonar. Simples: o que nos leva ao fascínio e hipnose é a paixão autêntica nos olhos e corpo de Chaplin. Mais uma prova evidente de que ele foi um dos maiores atores já captados por uma câmera. Cada detalhe de sua postura, cada intenção presente no dedo mindinho ou no fluxo de um suspiro.  Um leve sorriso que lhe escapa, o seu corpo em reações diretas à presença de Georgia. Um assombro, que me lembra de quando perguntaram ao polaco Vaslav Nijinski como era ser o maior bailarino do século, A resposta foi: "vocês devem perguntar isso para Charlie Chaplin". 


É esquisito pensar que, ao relançar o filme nos cinemas em 1942, o próprio Chaplin tenha escolhido cortar mais de 20 minutos da duração original. Para piorar, dessa vez com uma narração na própria voz (!), explicando motivações e diálogos sem o recurso das cartelas. Esquisitísismo. Infelizmente, essa é a versão mais divulgada e editada em DVDs. Corta o impacto fortíssimo das imagens no original, e ainda comete o crime de jogar fora o final original. Finalmente reunido com sua desejada Georgia num contexto hilariamente inusitado, os dois posam para uma foto e não resistem à distância entre os rostos. Um dos beijos mais fotogênicos do Cinema e da obra de Chaplin, num raríssimo final feliz e travesso. Tal beijaço não existe nessa versão de 1942. Fofocas (sempre elas!) afirmam que o corte visava aplacar os rumores tardios sobre o caso que teria surgido entre Chaplin e sua protagonista durante as filmagens. Vale lembar que, na época, Chaplin estava casado com a jovem Lita Grey, originalmente dona do papel até… engravidar do moço. Georgia Hale até deu entrevistas sobre   o suposto romance, defendido por ela até sua morte em 1985. Se a obra é uma coleção de UAUs, os bastidores são coleções de VISHs. O texto já está longo, sigamos a alguma conclusão. 



"Em Busca do Ouro" é uma coleção de planos lindíssimos, uma ode à condição humana por um dos cineastas mais sensíveis e poéticos que já pisaram num set. Diferente de obras mais famosas de Chaplin, esse abusa de closes dramáticos, iluminação onírica e calma contemplativa que apenas reforça a potência de cada enquadramento. Tudo aquilo em mil novecentos e vinte e cinco. Beira o inacreditável, como um casarão ventando travesso no limite do precipício. Listas e artigos acadêmicos tendem a apontar "Luzes da Cidade" (1931) e "Tempos Modernos" (1936) como as obras definitivas da vida de Charlie Chaplin. Já é quase costume, um clichê abraçado por escolas e faculdades de Cinema. Sobre isso, digo e repito: descubra "The Gold Rush". Fuja da versão falada de 1942, mergulhe no original de 1925.

Eu poderia esperar mais dois aninhos para escrever uma grande celebração pelo centenário de "Em Busca do Ouro". E aí seria apenas mais um texto sobre os 100 anos desse filme. Escrevo aqui da plena emoção transbordante e íntima de revisitar essa obra que, aos 98 aninhos, segue encharcada de Humanidade atemporal, universal. O cineasta francês Jean Cocteau, também poeta, certa vez escreveu que esse filme "é a luz da vela em um Natal triste, que ilumina o espaço e nos lembra de sorrir". Eu acho até vacilo tentar escrever mais qualquer coisa depois de algo assim. Termino descrevendo o final da sessão na Sala 1 com cerca de 100 pessoas no Estação Botafogo: risadas altas ao longo de toda projeção, aplausos e gritinhos pra tela diante do "The End". Ninguém da equipe estava presente, muito menos o cineasta/astro principal. Foram aplaudidos como se estivessem. Magia. Efeito semelhante ao que senti naquela primeira sessão numa madrugada de 2005. "Em Busca do Ouro" sempre será o marco zero de minha carreira ali oficialmente iniciada. A faísca da grande explosão que se iniciou, ironicamente, no mudo. O tal Ouro do título, que veio me buscar. Meu bilhete dourado. 




quinta-feira, 13 de abril de 2023

Quem Tem Um Sonho Não Dança - Os Embalos de "Bete Balanço" (1984)




Você já ouviu "Bete Balanço ", o hit. Mesmo que sem querer, ou sem saber. E por mais que você leitor curta a voz de Cazuza e o som do Barão Vermelho, é tragicamente possível que você nunca tenha visto "Bete Balanço". É isso mesmo. "Bete Balanço", o filme, é mais uma pérola esquecida do nosso Cinema Brasileiro, um cult abafado da nossa cultura pop. Foi lançado lá em 1984, e de imediato a trilha original ficou gigantemente mais famosa que o filme. Até hoje muita gente nem faz ideia de que ele existe. Obra como essa não ter chegado às novas gerações, ou mesmo aos cinéfilos apaixonados garimpeiros da nossa filmografia (como eu), é reflexo grave e tragiquíssimo do que é nosso Cinema, num panorama mais geral

"Bete Balanço" é um filme plenamente consciente de seu apelo, seu público, seu tempo. Planos lindíssimos e casamento maravilhoso entre Som & Imagem, orgulhosamente POP & jovem - inclusive no sentido experimental da proposta. Dá pra perceber em cada plano/corte um jovem cineasta em busca de novas linguagens e estéticas com seus carismáticos amigos-por-acaso-atores. Suspeito que se fosse com sotaque francês ou inglês, o impacto a longo prazo seria outro, o selo de "cult" garantido... Não há nada ali para se envergonhar ou desviar os olhos. Um retrato fascinante de um estado de espírito. Cores pulsantes e ritmo frenético, ao som das "novidades do momento". Barão Vermelho, Lobão, Celso Blues Boy, Titãs, cada trilha parece escrita especialmente pro filme. É narrativa, é tom, é clima. É diversão, pra balançar sem culpa.



Esse mergulho & degustação me fez voltar a cair em um nome: Lael Rodrigues, mais um injustamente enterrado pelo esquecimento coletivo que agride ele, nosso Cinema Brasileiro. Esse cara foi apaixonado por Cinema e Música desde a Juventude. Lá pelos 20 anos, foi assistente de direção do Hugo Carvana em "Vai Trabalhar, Vagabundo!" (1973) e inúmeros outros filmes dele nos anos 70. Fundou uma produtora independente com a amiga Tizuka Yamasaki, produzindo os filmes grandiosos que ela (uma gigante, hoje com 73 anos) ousava dirigir. Ali pelos 30, resolveu que era sua vez de começar a escrever e dirigir. E seu primeiro filme foi esse "Bete Balanço", que lançou a Débora Bloch e popularizou de vez a música do Barão Vermelho. Só por isso já merecia ser lembrado, assistido, celebrado até hoje. Logo na sequência emplacou "Rock Estrela" em 1985 e "Rádio Pirata" em 1987. Todos misturando marotamente Cinema & Rock, todos sucessos imediatos de público. Todos apresentando um extremo cuidado estético na elaboração dos planos, em como traduzir uma trilha forte em imagens irresistíveis e pura diversão. Lael Rodrigues não parecia ter interesse em obras difíceis, restritas aos festivais e prêmios. Cinema Brasileiro também podia ser pipocão com som no volume alto. E o cara conseguiu, nessa "trilogia" que conseguiu realizar. Eu acredito que só não tenha conseguido mais vezes porque morreu estupidamente jovem. Tinha apenas 37 anos (!!!) quando sofreu uma pancreatite aguda fatal. Como pode isso ?!?!? Deixou um filho de três meses e dois roteiros inéditos - hoje desaparecidos, nada se sabe sobre. Esquecido pelos livros, esnobado por professores, pesquisadores e documentários... apesar de ter emplacado três sucessos seguidos e sonoros .


Queria aproveitar essa análise mais profunda para deixar aqui alguns !!!!!!!!!! para o mulherão é Déborah Bloch. Vish. Ela tinha apenas 20 anos quando topou o papel-título, mas bancou a missão com carisma e presença. Uma protagonista feminina super ativa e ousada, que toma as rédeas de todas as ações determinantes no roteiro. Faz o que bem quer, do jeito que bem quer, inclusive nos momentos de tensão sexual e num ousadíssimo romance escancarado com a sofisticada diva Maria Zilda. Era beijo na boca e cena na cama pós-sexo entre duas mulheres num filme jovem e popular dos anos 80 ! Nada de cult pro circuito dos festivais: era filme jovem e livre pra fazer sucesso - e fez!  Sem falar que a Bloch solta a voz pra valer. A cena em que ela e o Cazuza descobrem a melodia de "Amor Amor" juntos é de arrepiar olhos e ouvidos. A maconha ali bem enquadrada entre os dedos era 0% vulgar, não era apologia, era uma câmera quase documental, modestamente captando aquela época tal como ela era. Eu poderia apostar que se a Déborah Bloch fosse estrela de um filme desses em outros cantos do mundo, imediatamente lançaria discos e carreira musical paralela. Por aqui, o timbre seguiu abafado.




Falando nisso de "captar uma época", esse "Bete Balanço" consegue até ser um trágico retrato de toda uma geração. Ali estão Lauro Corona e Cazuza no auge da juventude . Os dois já não existiriam uma década depois. O maior galã e o maior poeta daquela geração, precoces vítimas da AIDs - o primeiro em 1989, o segundo em 1990. Quando eu surgi em 1992, o astro, o compositor-ícone e o diretor desse filme que transpirava Juventude já não estavam aqui. E agora chegam tão perto.


Por fim, pulsa alto certo alívio de que uma figura tão expressiva, carismática e icônica quanto Cazuza tenha sido captado no auge por uma câmera tão estética e cuidadosa. Sua participação é pontual, mas não permite indiferença. Quem não o conhecia até ali, não poderia deixar de conhecer a partir do final da sessão. O filme acaba, a música-título continua. E ainda toca, quase 40 anos depois, bem alta e jovial. Quem tem um sonho não dança .