sexta-feira, 8 de março de 2024

WimWenders & Aprendenders - A Poesia Indirigível dos "Dias Perfeitos”


O cineasta Ernst Wilhelm Wenders, o “Wim”, já nasceu com ecos de Cinema. Veio ao mundo na cidade alemã eternizada no pesadíssimo clássico lançado por Fritz Lang em 1931, "M - O Vampiro de Düsseldorf”. Já era uma das maiores vozes do Novo Cinema Alemão quando levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes com a co-produção internacional “Paris, Texas” (1984). Ainda emendou na obra-prima "Asas do Desejo" (1987). Podia parar por ali, já bastava para o panteão dos gênios da sétima arte. Não parou.


Ao longo dos mais de 20 longas seguintes que assinaria como diretor, Wenders experimentou texturas narrativas e brincou com os limites entre a ficção e o documentário. Filmou a fé do Papa Francisco (2018) e a sintonia dos músicos do Buena Vista Social Club (1999) com a mesma curiosidade. Foi assistente dedicado do então debilitado mestre Michelangelo Antonioni (1995), e ousou captar Pina Bausch em movimentos 3D (2011). Uma câmera contemplativa que não se intimida diante de diferentes cadências, técnicas, línguas ou idiomas - sempre focada no Fator Humano que unifica os personagens diante da lente. E assim, se jogou a dirigir cenas em alemão, inglês, francês, italiano, até mesmo português. O diferente é parte do atrativo. Não mais que de repente, Tokyo. 


Wenders foi convidado ao Japão para acompanhar o Tokyo Toilet Project, no qual 17 artistas internacionais seriam convidados para repensar o design dos banheiros públicos da região de Shibuya. A proposta seria um curta, ou no máximo uma série de pequenos vídeos sobre cada um desses novos cenários. O cineasta viu ali a chance de algo maior, e se uniu ao co-roteirista Takuma Takasaki para elaborar um... longa, com um personagem protagonista que lidaria diretamente com aquele contexto e ambiência. Era pra ser um filme. 



É ingrato e simplório perguntar qual seria a história de “Perfect Days”. Mais que uma trama, se porta como um convite. Segue o raciocínio: você sabe como funciona uma cidade grande atropelada por rotinas e movida por uma insistente pressa que tudo rege. Independe do continente ou do fuso horário. Por vezes tropeçamos nos trabalhadores do cotidiano. Como aquele quieto “moço da manutenção” que pede um minuto antes que a gente use o banheiro que ele está limpando. Pois bem: o filme escolhe um desses personagens silenciosos (e fundamentais) da sociedade. Faz do invisível um protagonista. Convida o espectador a acompanhar seu ritmo, seus interesses, seus calculados momentos de inofensivo lazer, a trilha sonora que reverbera em sua intimidade de um carro fechado. Um dia simples, multiplicado na rotina do “um após o outro”. E nas brechas e curvas de tudo isso, o extraordinário. 

“Perfect Days” não se esforça para agradar seus possíveis públicos. Abraça seu personagem-guia em fidelidade comovente, com rigor quase documental - por isso mesmo, tão afetivo. Por mais que seja uma ficção, não há intenção em apressá-lo nos planos longos e contemplativos, muito menos forçar ações ousadas que possam trair o prático de sua existência. Como antes disse, parece um convite: "venha conhecer a realidade desse ser humano tão real quanto tantos outros que passaram por você hoje”. Talvez você não tenha percebido. Aqui você é convidado a perceber. De perto. É simples e aí está a grandiosidade da coisa. Ao longo das 17 sucintas diárias de filmagem, o mérito da direção de Wim Wenders está mais no “não corta isso, deixe rolar” do que em qualquer possível truque de câmera ou enquadramento elaborado. A parceria com o habitual diretor de fotografia Franz Lustig está afinada nesse caráter documental, "a imagem por ela”. E como é bonito. 



“Perfect Days” poderia passar despercebido, como tantos humanos quietos numa vasta rua barulhenta, como tantos filmes cultzinhos estreados esse mês.  Existe um fator que não permite essa indiferença. Ele tem nome + sobrenome: Kōji Yakusho. Talvez reconhecido por certo público em filmes mais acessíveis como "Dança Comigo?" (1996) e “Babel” (2006), o ator é requisitado e premiado no Oriente. Apenas agora, aos 68 anos, tem a oportunidade definitiva de tornar seu rosto conhecido e aplaudido por salas de cinema em todo mundo. Seu humilde Hirayama é uma espécie de Chaplin moderno: deslocado num mundo amargo e dolorido, cisma em enxergar Poesia e leveza nos pequenos detalhes que escapam. O vento nos galhos de uma árvore, o desenho de uma sombra na parede. Não é preciso muito para que um sorriso maroto lhe escape entre um banheiro sujo ou uma overdose de rotina. Deslocado também na interação com os “tempos modernos”, capta esses resquícios com uma câmera analógica, talvez sua única real amiga. Nem precisamos ver o resultado das fotos. É de Sentir. 


Por falar em Sentir, é impossível e imprudente não apontar para a trilha sonora. Os trajetos diários do personagem, com trânsito ou sem, são sonorizados por pérolas do repertório Rock da melhor qualidade. Estamos falando de ruas de Tokyo ao som de Otis Redding, The Kinks, Van Morrison, The Animals. Num dos momentos mais afetivos do filme, a voz rebelde de Patti Smith promove um comovente diálogo silencioso entre gerações. Nada precisa ser dito, está tudo lá. E falando em vozes, é bem possível que Yakusho, o ator protagonista, não tenha mais que 30 falas (sempre curtas) ao longo dos 125 minutos de filme. Pouquíssimos minutos de voz em mais de duas horas por ele guiadas. Não é problema: Koji Yakusho comunica em presença, grita em silêncio, transmite qualquer e todos sentimentos no vastíssimo oceano de seus profundos olhos. Gentis olhos. É sua doçura que permite um papo sobre doença terminal culminar num pique-pega juvenil entre sombras no chão. Resultado: Prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes 2023. Não é pouco. Yakusho é muito. 




Ao longo do passeio de mãos dadas entre público & tela, diversos personagens insistem em cruzar o caminho seguro, calculado, sem espaço para surpresas de Hirayama. O filme é tão cuidadoso em nos deixar intimamente confortáveis naquele universo que qualquer pequena intervenção nos incomoda. Invade os planos daquele querido “novo amigo” e atrapalha nossa vivência ao seu lado. É mérito da direção de Wenders e do autêntico que pulsa em seu muso Yakusho. Os dias passam na tela e chega a rolar a sensação de que qualquer “The End” seria um corte brusco e ingrato, seja onde/como fosse. É a própria vida… Como ousar um corte? 


É sim possível que muita gente saia da sessão de “Dias Perfeitos” com a certeza de que nada aconteceu nas últimas horas. É também certo que alguns terão dificuldade de levantar ao acender das luzes, tomados por uma overdose de emoções profundas. Wim Wenders, já um intocável na Arte do “Fazer Cinema”, ainda vivendo e aprendendo aos 78 anos, descobre (e banca!!) que não se corta uma voz como a de Nina Simone. Não se corta um ator expressivo como Kōji Yakusho. Deixa a câmera captar. O combo, catártico, extrapola créditos finais e viagens de volta pra casa. Rendeu um Prêmio do Júri no Festival de Cannes. E garantiu que “Perfect Days”, com título em inglês, se tornasse o primeiro filme representante do Japão no Oscar de Filme Internacional sem a direção de um cineasta japonês. Um diretor alemão, no caso, e que gosta de cantar Lou Reed. Apontado por ele como uma espécie de "guia espiritual" daquele personagem que pode ou não entender o que suas letras entoam, Reed cantarola os versos que batizam o filme.

"Oh, it's such a perfect day … 

I’m glad I spent it with you”.

É. Nós também.




* no final das contas, um baita ótimo registro pro Tokyo Toilet Project. Rolou.