sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Contos Proibidos - "The French Dispatch", uma publicação Wes Anderson

 


"Possível que seja essa a obra-prima definitiva do Wes Anderson". 
Lembro que essa foi a frase ao sair da sessão de "Moonrise Kingdom" no Estação Botafogo em 2012. Afinal, o já esperado turbilhão estético maravilhosamente decupado em cada mínimo detalhe parecia ali ter alcançado um nível máximo e inimaginável. E assim foi até assistir "O Grande Hotel Budapeste" na mesma sala de cinema em 2014. E repetir a exata mesma frase ao final da sessão. Estava tudo ali, para além de qualquer (alta) expectativa. Quase orgulhosamente inacreditável - e marotamente diante dos olhos. Corte para 2021. Final da sessão do "The French Dispatch". Mesmo Botafogo de sempre. Mesma frase na ponta da língua, tentando escapar. Orgulhosamente inacreditável, marotamente diante dos olhos. 

Ame ou odeie, não se pode negar que Wesley Wales Anderson é um dos cineastas mais originais e tecnicamente brilhantes em atividade no século 21. Também não se pode entender como, excêntrico do jeito que é, esnobou o uso do Wesley Wales da certidão para seu nome artístico. Como explicar isso?!?! Talvez seja parte do charme nem sempre fazer sentido. É porém difícil de contestar que seus Excêntricos Tenenbaums de 2001 já lhe garantiam lugar seguro na História do Cinema "Recente". Os seguintes "A Vida Marinha com Steve Zissou" (2004) e "Viagem a Darjeeling" (2007) apenas confirmaram sua reputação e o coração de cinéfilos cults ao redor do mundo. Wes Anderson, antes dos 40, já não precisava provar nada a ninguém. De lá pra cá se permitiu brincar com a nostalgia da animação stop-motion ( "O Fantástico Sr. Raposo" em 2009 e "Ilha de Cachorros" em 2018 ), além das duas obras-primas que abrem esse texto. E agora, ao agora.



Quando anunciou o novo roteiro finalizado lá em 2018 (ainda como um musical ambientado na França), moço Wes nem precisava se esforçar muito pra ter fãs + críticos + produtores em suas mãos. Lê-se: plena & absoluta liberdade criativa. O resultado é… Múltiplo. Mais de um. Vasto até no título original, "The French Dispatch of the Liberty, Kansas Evening Sun". Como explicar sua nova ousadia? É o seguinte: imagine que Wes Anderson estivesse cheio de pequenos contos com sua deliciosa assinatura autoral - todos muito promissores, porém curtos e "soltos" demais para sustentar um longa. E aí veio o estalo para unir o útil ao ótimo: leitor assíduo, sempre foi apaixonado pela The New Yorker, influente e histórica revista publicada desde 1925. Um marco da cultura americana ao misturar fatos, análises, política, sociedade, crônicas, contos, ensaios, com tudo charmosamente ornado por belíssimas capas desenhadas especialmente para cada edição. Surge assim a tal The French Dispatch, publicação fictícia do editor-chefe vivido pelo amigão de sempre Bill Murray. É o personagem criado para ler, ligar e editar todos os distintos blocos narrativos. Pronto, resolvido. Trata-se de uma coletânea, um convite (irrecusável) a degustar esse "tesouro literário", página a página. E capa a capa, pois foram muitas as ilustrações criadas especialmente para ilustrar a trajetória da revista. A começar pelo fantástico pôster, são obras de Arte delicadíssimas que justificariam uma exposição irresistível. Voltando à estrutura escolhida (até na questão das ilustrações), é um esquema parecidíssimo com o criado pelos Irmãos Coen em "A Balada de Buster Scruggs", coletânea de westerns lançada pela Netflix em 2018. A proposta é basicamente a mesma, aqui ao molho Wes Anderson. 


Essa licença poética-autoral permite explorar "diferentes vozes" (distintos escritores, cada um com seu tom) e núcleos isolados, sem a necessidade de um arco único que tudo ligue. Pura faísca pra explosão criativa. A afinadíssima parceria com Robert Yeoman, seu fotógrafo de sempre, transborda em cores hipnóticas e PB nostálgico. O cineasta pinta, brinca e borda com ecos (conscientes) de Cinema Mudo, Nouvelle Vague, Radionovela, Pintura clássica, Expressionismo, Impressionismo, Noir, Fotografia urbana do século 19, Maio de 68, Psicanálise, Pop-Art, Surrealismo, Animação 2D, tudo junto e misturado numa mesma edição extraordinária. Um visceral caldeirão de referências sem fim que chocantemente se sustenta e se converte no desfile de estrelas e enquadramentos prontos para as paredes de qualquer museu do mundo. Aquele mesmo papo: um turbilhão estético e sensorial, orgulhosamente inacreditável e marotamente diante dos olhos. 



Claro que nem sempre funciona de forma perfeita, e nem tenta. Uma receita com tantos ingredientes naturalmente traria pontuais tons agridoces ou que passam sem marcante impacto. Velhos conhecidos da trupe como Jason Schwartzman, Willem Dafoe e Edward Norton surgem simbolicamente apenas para garantir os nomes no pôster e um eventual "ah, sim… ele tá ali né!". É ver (e não piscar!) pra crer. Até mesmo Anjelica Huston, rosto imponente na galeria de personagens do cineasta, surge apenas como narradora ocasional. É um dos "preços" e aspectos de contar com um elenco tão vasto em menos de duas horas. Há espaço para brilho (e roubadas de cena) de  gente como Benicio del Toro, Adrien Brody e Léa Seydoux - aliás, trio presente no melhor fragmento do combo. Ter uma Frances McDormand em ação até ajuda a ignorar o fato de que queridinho do momento Timothée Chalamet destoa do climão geral. Ali no meio da três vezes Oscarizada veterana e da promissora franco-argentina Lyna Khoudri, a gente quase esquece qualquer canastrice no olhar do jovem moço. 



Para muito além de comentar cada performance ou fragmento selecionado para a "publicação", é a todo momento evidente que cada detalhe/corte/recorte/sugestão/visual foi muitíssimo bem planejado e orquestrado pela delirante mente estampada de Wes Anderson. Algo tão genuíno que se reflete na própria originalidade do roteiro. Já nos primeiros minutos da obra, somos apresentados ao lema que guia o personagem de Murray na escolha dos seus escritores e materiais: "Tente parecer que você escreveu daquele jeito de propósito". Já nesses primeiros minutos da obra, Anderson compartilha sua carta de intenções com o público. "The French Dispatch" não é e nem precisa ser a melhor obra do cineasta - ainda que a todo momento desfile claros motivos visuais, poéticos, filosóficos e humanos de que muito bem poderia ser. 



O filme foi lançado no Brasil com a tradução "A Crônica Francesa" - mas poderia muito bem ter mantido a força "editorial" do título original, tal qual sabiamente fizeram em "Moonrise Kingdom". Enquanto esse comentário é devidamente esnobado e esse texto é finalizado, Wes Anderson, seu fotógrafo + fiel equipe de costume já avançam com "Asteroid City", novo roteiro que promete trazer "o maior elenco já reunido numa obra do diretor". Ou seja, aquele timão de sempre mais algumas estrelas completamente inusitadas - no caso, os já confirmados Tom Hanks e Margot Robbie (!!) . O jovem texano que ousou bancar seu universo atípico em baixíssima produção nos passos iniciais de "Bottle Rocket" (1996) e "Rushmore" (1998), hoje deita em sua cama (colorida, e bem no centro do quarto) plenamente aliviado. Aos 52 anos, ídolo de fã clubes em todas as línguas do planeta e com membros invejáveis no elenco de seu cartão fidelidade, ele pode escrever o roteiro que bem quiser - como se tivesse feito daquele jeito de propósito. Não precisa provar nada a ninguém. Possível que seja essa sua obra-prima definitiva.