sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Pintura Íntima - As certeiras incertezas de "Jane B. par Agnès V."


Visitar a obra da cineasta belga Agnès Varda sempre engata indagações e revoluções artísticas. Sua co-existência com o mundo, desde as origens na Fotografia, se fundiu completamente ao processo criativo artístico em si. É sempre um difícil desafio descrever quase todos seus filmes: é ficção? é documentário? é possível de se definir? Um caminho mais seguro é o "Em todo caso, assista, e o quanto antes". Certamente, verdadeiros estados de espírito gentilmente compartilhados com quem aceita o convite ao mergulho.


Um fascinante exemplo disso tudo é "Jane B. par Agnès V.", cuja gravação em 1987-88 foi motivada puramente pela curiosidade genuína que Varda tinha por Jane Birkin. Uma das criaturas mais belas que já caminharam na Terra, a modelo/cantora/atriz (hoje com 74 anos) já era mundialmente famosa e documentada. A busca da marota e inquieta cineasta era por ângulos e curvas que a própria personagem principal desconhecia. E essa constante procura orgulhosamente indefinida é a razão de ser do próprio filme. Em determinado momento, Birkin confessa à câmera que "minhas filhas me perguntam o que estou filmando e eu não sei responder, digo que talvez seja uma pintura da Varda". Literalmente e em muitos aspectos, é exatamente isso mesmo. O filme entrega imagens e enquadramentos quase inacreditáveis. É como se Varda decidisse pintar um retrato definitivo de Birkin - e faz questão de registrar em câmera essa busca minuciosa por cada textura, tonalidade, timbre. A própria Varda se joga em cena, como de costume. Meio que do nada, em pleno corte propostial, pergunta à protagonista qual ator ela gostaria de conhecer/dividir cena. E assim surge Jean-Pierre Léaud para um rápido conto a dois. E  qual personagem ela gostaria de interpretar? E se jogam as duas ao desafio dramático de Joana D’Arc. Um jogo de cena aberto e escancarado para degustação geral. 



Durante uma dessas conversas espontâneas e quase sem filtros (embora seja a câmera muito consciente), acaba por surgir um roteiro "nunca antes contado" que Birkin deixou escapar certo dia. Ela confessa nunca ter tido a esperança de que um dia fosse lido ou considerado. Pois esse tal roteiro, ali resumido em poucos segundos, foi a base direta para a ficção "Kung Fu Master", que as duas gravariam imediatamente em sequência, para lançar no mesmo ano de 1988. Um longa que traz no elenco Birkin e sua filha Charlotte Gainsbourg, além do jovem Mathieu Demy, filho da diretora com o cineasta Jacques Demy. O real baila e brinca com a ficção, um projeto puxa o outro, uma faísca contagia adiante. Como tudo na Vida - que, no caso de Agnès Varda, era sua própria Arte. Mais uma vez e orgulhosamente, o processo como mais valioso resultado, num afetivo abraço ao que se descobre no caminho. A bela certeza de gostar das incertezas.



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