terça-feira, 28 de junho de 2011

Eu, Robô - O encanto inabalável de "Blade Runner - O Caçador de Andróides"


É revendo filmes que certificamos o quanto gostamos deles e descobrimos seus detalhes mais interessantes. E foi revendo “Blade Runner – O Caçador de Andróides” que enfim compreendi a grande adoração existente em torno desse (hoje em dia, já) clássico da ficção científica. Ao assistir a versão original pela primeira vez, não entendi o porquê daquele filme de estrutura tão simples ser tão estudado e cultuado. Olhos de criança assistiam a um produto feito para olhos maduros, o que justifica ele não ter inicialmente respondido às minhas expectativas.

Mais tarde, viria a saber que aquela versão à qual assisti, lançada originalmente em 1982, fora um grande fracasso de bilheteria. Riddley Scott, diretor da obra, teve que se submeter às vontades do estúdio, incluindo até um “final feliz” imposto pelos produtores. Mas Scott, que na época era ainda badalado pelo filmaço “Alien – O Oitavo Passageiro” - lançado em 1979 - , não abriria mão facilmente de sua obra-prima. E assim, foi um dos primeiros cineastas a lançar a hoje já consagrada “Versão do Diretor”, em 1991. Essa versão deixava de lado a didática e desnecessária narração em off do protagonista e tinha um final alternativo mais condizente com a trama. Essa versão foi a que revi, 20 anos após ser lançada. E essa versão que me explicou o porquê do mito.


Adaptação do livro de Philip K. Dick, “Do Androids Dream at Eletric Sheep?”, o filme que viria a se tornar um dos grandes “cults” da história do cinema - inspirando moda, animação, música e, obviamente, cinema – tinha passado pelas mãos de Martin Scorsese ainda no começo de sua carreira. Esse optou por filmar “Táxi Driver”(1976), deixando o projeto à espera de um diretor que conseguisse transmitir o clima caótico e pessimista proposto pela obra. Após dar uma aula de suspense e criação de tensão no claustrofóbico filme original da série "Alien", ficou claro que o melhor homem para esse trabalho seria Riddley Scott. Mestre na arte de fazer grandes filmes, Scott é um diretor que sabe como poucos usar o cenário a favor de uma história - como provam esses dois filmes e, mais tarde, o pretensioso “Gladiador” (2000) - , apesar de não receber todo o reconhecimento que merece. Aos 72 anos, continua realizando grandes filmes, muitas vezes esnobados pelo público, como foi o caso de “O Gângster” (2007).

Mas voltando ao filme. “Blade Runner” tem uma premissa simples, que acompanha Rick Deckard (um Harrison Ford no auge da carreira) em sua última missão antes de se aposentar: caçador de andróides, ele deve “aposentar” – ou seja, executar – um grupo rebelde de replicantes, andróides dotados de emoções tão reais quanto os humanos que os construíram. E é basicamente isso, com estrutura dos filmes de detetive dos anos 40, sem grandes surpresas ao longo do filme. Claro que as coisas mudam um pouco de rumo quando Deckard acaba se apaixonando por um dos robôs que deve eliminar, encarnado pela sumida Sean Young, que com seu olhar penetrante dá vida (literalmente) a um dos andróides mais sensuais já vistos, mesmo sem fazer muito esforço.


Mas o grande legado do filme é sem dúvida visual. Uma versão mais sombria e decadente da cidade de “Metropolis” (1927), de Fritz Lang, os arranha-céus de “Blade Runner” são ainda hoje uma das visões mais assustadoras – e possíveis – do que seria o futuro do homem no planeta Terra, sendo ainda mais incômoda após se passar uma noite na cidade de São Paulo. As semelhanças são gritantes, e o filme se passa em 2019, ou seja... ainda dá tempo. Além de uma aula de direção de arte, com cenários que de tão líricos parecem uma versão futurista de Federico Fellini – principalmente o grande casarão repleto de robôs que serve de residência para J.F. Sebastian (William Sanderson), ele mesmo um personagem felliniano -, o filme é ainda uma aula de fotografia, com uma iluminação que destaca cada um dos atores tornando cada cena um verdadeiro quadro em movimento. De quebra, a trilha sonora composta por Vangelis – autor da famosa música de “Carruagens de Fogo”(1984), que virou lugar comum em corridas – facilita mais ainda na climatização, gerando frio na espinha em total sintonia com as imagens.

Harrison Ford teve vários problemas com Scott durante as tumultuadas filmagens. Vivendo um personagem que é a antítese de Han Solo (da série Star Wars) e Indiana Jones, os grandes ícones que o eternizaram no cinema, Ford ainda tinha um relacionamento ruim com Young, seu par romântico nas telas. Até hoje Ford pouco fala ou comenta dessa produção, mas esse sentimento de insatisfação caiu bem ao personagem e inclusive contribuiu na atuação. É o caso em que pequenos ressentimentos e detalhes pessoais acabam contribuindo na construção de uma obra-prima.


Poucas vezes um filme reuniu tantos rostos marcantes e únicos em uma só produção: os traços ingênuos de Young, a presença misteriosa de Joe Turkell – o barman que assombrava um atordoado Jack Nicholson em “O Iluminado” (1980) e aqui era Tyrell, a encarnação de Deus para os andróides – e a hipnótica composição de personagem de Daryl Hannah e, principalmente, Rutger Hauer, icônicos no papel dos replicantes. Hannah, mesmo com pouco tempo em cena, trabalha detalhadamente cada movimento de sua andróide Pris, conseguindo ser encantadora e assustadora na medida certa. E Hauer dá um show na pele de Roy Batty, o filosófico e frio líder dos replicantes, roubando todo o filme com sua atuação visceral. A cena do embate final entre ele e Deckard está eternizada como um dos momentos mais bonitos e reflexivos do cinema. O mais incômodo, porém, é perceber na relação entre os andróides uma humaninade maior do que na dos considerados humanos. Talves esse seja o ponto que torne “Blade Runner” tão diferente de outras produções que tentaram traçar caminho semelhante e se tornaram esquecíveis, como é o caso do filme que dá título a essa matéria. É mais que um mero filme de ação, mas um estudo sobre os limites da tecnologia e do sentimento humano, junto com “AI – Inteligência Artificial” (2001), filme pouco valorizado dirigido pelo “midas” Steven Spielberg.

Obra seminal de ficção científica ao lado de “2001 – Uma Odisséia no Espaço”(1968), “Blade Runner – O Caçador de Andróides” mistura ciência, existencialismo e poesia de forma nunca antes (e depois) vista nesse gênero. Obviamente, como todo filme cult, esse também deixa várias mensagens subliminares soltas durante os 116 minutos de duração: o prego na mão de Roy (menção à crucificação de Cristo?), a presença do enigmático personagem de Edward James Olmos e seus origamis, a aparição de um unicórnio em sonhos, o final em aberto e a interminável dúvida de Deckard ser ele próprio um replicante, como a iluminação em seu olhar indica em determinadas cenas rápidas. Será que ele é? Sinceramente: melhor não saber. Levar às perguntas é mais interessante do que dar as respostas. Riddley Scott sabia disso. Os fãs que cultuam esse filme há décadas também.

3 comentários:

  1. Excelente matéria, Kaio! Vou até rever o filme, pois passei pelo mesmo problema que você: quando vi Blade Runner pela primeira vez, não gostei (nem entendi) do filme, já que era "imaturo". Abraço e continue escrevendo... e eu continuarei lendo.

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  2. Parabéns pela matéria Kaio. Este é um dos meus filmes preferidos. Assisti várias vezes e ainda consigo ter novas informações através da sua matéria. Diversas vezes me peguei refletindo na janela do meu escritório no 19º andar de um prédio na Av. Paulista 2200, e parece que sou levado ao ano de 2019, tal é a semelhança da imagem que vejo com a do filme.Em tardes sombrias e cinzentas a imagem é exatamente igual. Só não vejo aquelas naves, mas é só trazer o congestionamento dos automóveis da Paulista para as alturas e teremos o cenário completo. Penso até que os diretores do filme estiveram por aqui antes de ralizálo. Excelente matéria.

    Abs, Sidnei.

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  3. Adoro "Blade....", por inúmeras razões e divagações(muitas delas... descritas por vc, aqui). Estética futurista sobre uma distopia que rende um tratado!

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